Mellanie Fontes-Dutra: a neurocientista que combate fake news da pandemia
Mellanie Fontes-Dutra, 28 anos, é pós-doutoranda em bioquímica pela UFGRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e mestre e doutora em neurociências. Até a chegada da pandemia de coronavírus ao Brasil, há um ano, ela trabalhava em laboratório pesquisando o transtorno do espectro autista, mas a necessidade de distanciamento social a obrigou a trabalhar de casa — foi quando passou a se dedicar a traduzir de forma clara e bem informal informações sobre a covid-19, de vacinas e variantes a termos como lockdown.
O resultado? Com 8.200 seguidores, ela foi eleita uma dos cinco maiores influenciadores brasileiros sobre coronavírus pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados e pela plataforma Science Pulse. Os principais critérios para avaliar a influência foram popularidade, autoridade e articulação.
Em entrevista a Universa, a biomédica fala sobre o desafio de combater a desinformação que parte inclusive de governantes, possíveis caminhos para o Brasil sair da crise sanitária, a presença de mulheres na ciência e síndrome da impostora — sim, ela também sofre com isso.
UNIVERSA: Como nasceu seu interesse por ciência? Qual foi o pontapé inicial para que você se tornasse uma cientista?
MELLANIE FONTES-DUTRA: Eu comecei a me interessar por ciências muito cedo, sempre gostei de estudar muito e era uma criança que perguntava tudo o tempo todo. No ensino médio, eu tinha muito interesse em seguir uma profissão que me permitisse construir conhecimento. A ciência era um dos caminhos, mas eu tive muito medo, porque eu não tinha muitos exemplos de mulheres bem-sucedidas nessa área. No fim das contas, encontrei mulheres incríveis no caminho, inclusive minhas orientadoras.
Quais são os principais desafios de fazer divulgação científica no Brasil de 2021?
Ao mesmo tempo em que muita informação relevante é gerada, especialmente sobre saúde, a gente também precisa combater a desinformação. É de suma importância que os cientistas se dediquem a isso: propagar informação e checar possíveis notícias falsas. Um dos principais desafios hoje é fazer essa comunicação aberta, esclarecedora e acessível para conscientizar a população. Temos que fazer as pessoas entenderem que é importante aderir às medidas restritivas dada a gravidade da situação, em que muitos estados se encontram em iminência de colapso das UTIs. Fora isso, é preciso checar notícias falsas, convencer gestores de que é necessário apoiar políticas públicas na ciência. Os desafios são muitos.
Quais são as maiores dúvidas que surgem entre seus seguidores?
Sobre vacina, com certeza. Se determinada vacina cobre novas variantes, se tem efeitos colaterais, por exemplo. Também perguntam muito sobre lockdown e me trazem muitas notícias falsas para confirmar se são verdadeiras.
Qual é a sensação de checar e corrigir desinformação quando o próprio presidente é fonte delas?
A gente tem que ficar fazendo checagem de informação falsa vinda de gestores que deveriam estar se baseando na ciência para falar com a população. Isso é muito desafiador. Não quero entrar na questão partidária, mas é complicado quando a gente tem tanta desinformação vindo de gestores, seja do presidente ou de gestores estaduais e municipais, o que também acontece muito. São pessoas que a população usa como exemplo e espera que tenham responsabilidade ao orientar o país neste momento, mas não é o que nós vemos.
Vivemos hoje o pior momento da pandemia. O que ainda falta para que essa comunicação sobre cuidados e riscos tenha impacto positivo nos números?
É uma pergunta que eu sinceramente não sei responder. Penso nisso todos os dias. O que eu posso fazer para melhorar minha comunicação? Acredito que a parceria com a mídia, que está colocando cientistas no horário nobre e nas manchetes é maravilhosa, porque assim a gente tem oportunidade de conversar direto com a população. E o que a população precisa é de exemplo.
Houve um momento na história dos Estados Unidos em que uma campanha de vacinação estava com baixa adesão entre os mais jovens, até que convidaram o Elvis para ser vacinado. Quando fotos dele tomando vacina apareceram nos jornais, os jovens passaram a se vacinar também.
Se a gente tivesse um exemplo vindo do presidente, das grandes autoridades, demonstrando o quão séria é a vacinação, ajudaria. Se a gente tivesse a volta de grandes campanhas, também ajudaria muito. Tem que voltar com o Zé Gotinha. Funcionou muito bem nas campanhas contra a poliomielite infantil.
Pela sua experiência, que mudanças precisam acontecer para que o Brasil veja melhoras no cenário atual?
Faltam o governo se comunicar melhor com a população e políticas baseadas em evidências científicas — por muitas vezes, desde o começo, vimos muitas ações que não seguem a ciência, muita gente defendendo tratamentos que não têm evidências. Além disso, é preciso uma coordenação nacional para o enfrentamento da pandemia, e não mais cada estado tomar suas próprias decisões. Isso faltou muito e ainda falta. Por fim, a população precisa ter responsabilidade coletiva, e entender que vive em sociedade. Pandemia é uma coisa que a gente resolve junto. A vacina é importante para a proteção individual, claro, mas o real benefício é a proteção coletiva. Acho que com esses quatro pontos -melhor comunicação do governo com a população, ações baseadas em evidências científicas, coordenação nacional e pacto coletivo- a gente consegue começar a sair do lugar.
Você está entre os maiores influenciadores sobre pandemia do país. O que você acha que te levou a ter tanto alcance?
Eu já me perguntei isso diversas vezes. Eu sofro um pouco de síndrome da impostora. Penso: "Como assim? Será que está certo isso?". Mas acho que talvez seja a forma de explicar, de apresentar o conteúdo usando referências próximas das pessoas: memes, gifs, linguagem bem informal mesmo. Acho que a minha pesquisa em neurociência me ajuda a entender um pouco sobre como as pessoas funcionam e, assim, consigo criar ambientes em que elas se sentem acolhidas para fazer uma pergunta, porque confiam no meu trabalho, e depois compartilhar a checagem de uma informação, o que ajuda a furar a bolha.
Você mencionou a síndrome da impostora. De que forma ela aparece?
Percebi que isso existia conversando com outras mulheres, vendo que elas também sofrem dessa questão. Não lembro exatamente quando me dei conta, mas a síndrome da impostora apareceu diversas vezes. Na área acadêmica é muito comum, quando uma pessoa diz que você é muito nova, por exemplo, ou desmerece seu trabalho porque você ainda não tem o título X ou Y. São situações que vão minando a confiança, principalmente das mulheres, e faz com que a gente não aproveite nossas pequenas vitórias. Você vai lá, alcança algo superlegal, mas não consegue aproveitar 100%, acha que não merece, porque alguém — ou alguns alguéns — incutiu isso em você.
O protagonismo feminino na ciência ficou evidente durante a pandemia. A pandemia pode mudar a forma como o país vê as cientistas?
Com certeza. A pandemia trouxe à tona muitos pesquisadores — e é muito bom que a sociedade conheça quem são as pessoas fazendo ciência hoje — mas especialmente muitas mulheres pesquisadoras. Natália Pasternack, Margareth Dalcolmo, Denise Garrett, Jaqueline Góes, entre tantas outras. Hoje, se uma criança perguntar sobre mulheres cientistas, a gente tem nomes na ponta da língua para responder, e isso é maravilhoso.
Apesar disso, ainda há desafios na formação de mulheres cientistas?
A gente ainda tem um ambiente que precisa de muita equidade e estamos construindo isso aos poucos. Mulheres precisam ocupar cada vez mais cargos de chefia, assim como pessoas pretas e pessoas transexuais. Para mim, seguir carreira na ciência foi uma decisão muito difícil, de muita coragem, porque eu não tinha tantos exemplos de mulheres bem-sucedidas na ciência. E eu não quero que seja difícil para outras meninas, quero que as próximas gerações de cientistas tenham as referências que eu não tive, e encontrem pelo caminho mulheres que vão ajudá-las a alcançar seus objetivos — professoras, orientadoras, colegas de trabalho, chefes. Vai ser muito bonito.
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