Ingriane morreu, Luciene foi presa: caso de aborto vai a júri popular na 5ª
Ingriane Barbosa tinha 30 anos e três filhos quando se viu grávida mais uma vez, em 2018, e abandonada pelo pai da criança. Sem amparo social e sem apoio dos ex-companheiros, não tinha como levar uma gravidez adiante. Desesperada, pediu ajuda a um conhecido para interromper a gestação. Como a lei brasileira criminaliza o aborto, ela decidiu realizá-lo mesmo clandestinamente.
Luciene de Sá recebeu R$ 300 de Ingriane para ajudá-la a interromper a gravidez no quarto mês. Fizeram algumas tentativas, incluindo uso de medicamentos abortivos, que não funcionaram. A última foi introduzir um talo de mamona, que levou Ingriane à morte por infecção generalizada e fez com que Luciene fosse presa. Amanhã, ela vai a júri popular em Petrópolis (RJ) sob acusação do crime de aborto.
Segundo dados do Ministério da Saúde divulgados em 2018, assim como Ingriane, a cada dois dias uma mulher morre em decorrência de um aborto inseguro no país.
Universa conversou com a defensora pública Flavia Nascimento. Ela não está envolvida na ação, mas acompanha o caso como coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria do Rio de Janeiro. Ela também defende a descriminalização do crime de aborto. "Estamos perdendo vidas", diz.
"Ela estava passando mal, mas tinha medo de ir a um hospital e ser presa"
Luciene responde pelo crime de aborto praticado por terceiro, com a qualificadora - que pode aumentar a punição - gerada pela morte de Ingriane. A pena varia de dois a oito anos de prisão.
"Luciene está em prisão domiciliar. São duas pessoas denunciadas, ela e o rapaz amigo de Ingriane que a indicou para fazer o aborto", diz. "Ele, porém, responde o processo em liberdade. É muito emblemático que o homem responda solto, e a mulher, presa. Mulheres são duplamente reprovadas quando o tema é aborto."
A defensora questiona o fato de a lei punir uma mulher que auxiliou outra a interromper a gravidez com seu consentimento. E afirma que a maneira de impedir que isso se repetisse seria a descriminalização. "Aí não haveria motivo para buscar a forma clandestina, insegura. E a gestante poderia decidir o que fosse melhor para si sem correr risco."
Fazem parte do processo prints de conversas de Ingriane com amigos falando sobre a necessidade de interromper a gestação, uma vez que não tinha condições de criar mais um filho. Também há conversas com uma pessoa de confiança em que ela relata seu desespero após começar a passar mal por cauda da introdução do pedaço de mamona, que, ao causar uma inflamação no útero, ela acreditava que expulsaria o feto.
"Nas conversas vemos que ela estava trabalhando quando começou a sentir sintomas como febres e dores. Mas comentou que não ia procurar um serviço de saúde porque tinha medo de ser presa. A vida dela poderia ter sido salva", diz Flavia.
Lei do aborto prende mulheres negras, mães e pobres
Flavia cita um levantamento feito pela Defensoria do Rio de Janeiro, publicado em 2018, para explicar em qual grupo incide, de fato, a criminalização do aborto. "A maioria são mulheres negras, mãe e pobres. Tanto as que responderam por ter praticado o autoaborto quanto as que auxiliaram outra pessoa a realizá-lo", diz. Tanto Ingriane quanto Luciene fazem parte desse perfil.
"São mulheres que não têm acesso a políticas públicas de bem-estar social, menos escolarizadas, que não têm acesso adequado à informação e à saúde, por isso não dispõem de métodos contraceptivos, e residem em áreas periféricas", explica.
Entre os menores índices de criminalização estão responsáveis por clínicas clandestinas, muitos deles profissionais de saúde, que atendem pacientes de classe média e alta.
"A gente tem que ter bem delineada essa situação. A mulher que não tem dinheiro para acessar uma clínica vai procurar formas inseguras de realizar um aborto, e isso contribui para o alto índice de mortalidade materna que o Brasil apresenta. É um número que não conseguimos baixar e uma das causas é a criminalização do aborto", diz.
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