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PM de SP agride mulher negra e trans e a acusa de desacato por filmar ação

Sol foi agredida após gravar abordagem violenta da PM de SP - Arquivo pessoal
Sol foi agredida após gravar abordagem violenta da PM de SP Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

17/03/2021 04h00

Nascida na região do Capão Redondo, uma das áreas mais violentas de São Paulo, a veterinária e maquiadora Sol Santos Rocha, 27, diz que foi ensinada desde pequena a evitar passar por policiais. "Podia acontecer algo perigoso para a gente, enquanto pessoas negras", ela justifica.

Por isso não foi surpresa —mas também não deixou de ser devastador para ela— a agressão que sofreu em fevereiro do ano passado, por dois policiais, ao gravar da câmera de seu celular os agentes abordarem de forma truculenta um homem. Ela, que é uma mulher trans, acabou xingada e indo para a delegacia.

As imagens da ação foram divulgadas somente agora, mais de um ano após o ocorrido, porque Sol desenvolveu crises de pânico e precisava se recuperar: ela mora e trabalha em frente aonde tudo ocorreu. "Impossível apagar".

No vídeo publicado no seu Instagram há três dias e visualizado mais de 790 mil vezes, Sol conta que estava no trabalho, na Casa 1 - Centro de Cultura e Acolhimento LGBT, no bairro Bela Vista, quando ouviu gritos do lado de fora do prédio, e junto com outras pessoas foi ver o que estava acontecendo.

Ao ver a abordagem dos policiais, começou a filmar aquela atitude que, na avaliação dela, era violenta, junto a outras testemunhas. E também junto a outras pessoas pediu que os agentes parassem com o que consideravam ser agressões.

Neste momento, ela relata, um dos PMs pediu para ver seus documentos e queria levá-la como testemunha para a delegacia de polícia. Diante da recusa, foi arrastada até o outro lado da rua, agredida verbalmente e revistada por dois policiais homens. É direito de uma mulher ser revistada apenas por agente de segurança feminina, e Sol é uma mulher trans, portanto, deveria ser abordada por uma mulher.

Ela ainda foi levada para a 78º DP (Jardins), e autuada por desacato à autoridade e por tentativa de favorecer que o homem agredido fugisse. Ela sequer o conhece. Sol terá uma audiência em maio, em que todas as partes serão ouvidas pelo juiz, Ministério Público e ambas as defesas. Se condenada, ela poderá ter que pagar cestas básicas, ou um salário mínimo ou ainda realizar serviço comunitário, segundo explica uma das advogadas dela, Vivian Marconi da Silva. "Mas acreditamos que ela será absolvida", afirma Vivian.

Sol se sente injustiçada

"É muita injustiça. E ainda zombaram, riram de mim quando pedi por uma policial mulher. Disseram que não era meu direito. Ainda puxaram meu cabelo, me deram [o golpe] chave de braço, me empurraram na parede. E tentaram apagar as imagens do meu celular", relata.

"Quando cheguei na delegacia, fui mantida por horas numa sala, suja, descalça. Nem sabia onde estava meu RG, meu celular. Os policiais passavam, davam risada. Eu já estava totalmente desestruturada física e emocionalmente. Achei que ia ficar presa."

Ela conta ainda ter pensado que ia morrer ao ser colocada na viatura policial, e que esse temor a acompanha diariamente, por ser uma mulher trans e negra.

"É um medo constante. Quando me colocaram na viatura, não tinha certeza de que iam me levar para a delegacia, porque já vimos casos de pessoas não chegarem lá. Sou atacada todos os dias, e esperava que a polícia estivesse ali pra proteger", desabafa. Ela conta ainda que após a divulgação dos vídeos, recebe ataques transfóbicos e racistas em sua página.

Passou para três faculdades públicas, mas sofreu preconceito em sala

Formada em medicina veterinária pela USP, Sol atua como maquiadora enquanto tenta mudar seu registro profissional com o nome social. Estudante a vida inteira de escola pública, ela conta orgulhosa que passou para três importantes universidades do país, mas que isso não a impediu de ser vítima de transfobia em sala de aula.

"Durante o meu terceiro ano do Ensino Médio, estudei todos os dias, de manhã até a noite, e trabalhava à tarde para juntar dinheiro porque achava que não ia passar no vestibular, que teria que pagar um curso. E passei na Unesp, USP e para a UFRJ", ela conta.

"Muitas vezes os professores davam risada, e faziam comentários transfóbicos, usavam argumentos biológicos para se justificar, reclamavam da minha roupa em aula. Não me senti muito acolhida no meio acadêmico", afirma ela, filha de doméstica e um porteiro.

Com a divulgação do vídeo e o processo, Sol espera que tudo seja esclarecido e que ela possa seguir em frente.

"Espero que esse caso mostre para outras pessoas trans negras que podemos, sim, ir atrás dos nossos direitos e espero que haja um inquérito para avaliar a ação da PM."

O outro lado

Universa procurou, por e-mail, a Secretaria de Segurança Pública para a pasta avaliar a ação dos policiais, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

Consta no boletim de ocorrência que os policiais envolvidos na ação faziam patrulhamento quando viram um homem correndo no meio dos carros, e por ser um local conhecido por alto número de roubos e furtos de celulares, perseguiram a pessoa e observaram que ele estava enrolando algum objeto na camiseta. Seria um celular roubado, suspeita que depois foi confirmada.

Ao abordá-lo, segundo os agentes, o suspeito tentou fugir e por isso usaram força moderada para contê-lo.

Ainda no boletim, os agentes afirmam que Sol teria incitado a população a resgatar o homem, gritando "solta ele", e isso começou a causar aglomeração de pessoas. Os policiais alegam que sua atitude causou grande dificuldade para realizar seu trabalho, e desconfiaram se Sol não estaria junto com o detido, tentando acobertar sua conduta. Falam ainda que ela teria se recusado a se identificar e que foi, sim, revistada por policial feminina.