Após descrever violência em livro, ela criou selo para só publicar mulheres
"Estive à beira do feminicídio", diz a escritora e jornalista Dani Costa Russo, 39. "A escrita me salvou", completa ela, que publicou seu primeiro romance baseado na própria história de violência doméstica durante o primeiro casamento.
O romance "Beijos no chão" narra a violência contínua que uma mulher de classe média alta, com dois filhos pequenos, sofre na mão do marido alcoólatra. Depois de enviar o original para diversas editoras e ter todas as propostas recusadas, o sonho do primeiro livro adormeceu. Foi retomado há seis anos, quando, diz ela, a ascensão do debate feminista tornou a obra mais urgente. Após participar de um prêmio literário, ela publicou o próprio livro.
Com a experiência libertadora, decidiu propiciar a experiência para outras mulheres e, há um ano, criou o selo Auroras, que agora está selecionando novas autoras. Ela fala do machismo no mercado editorial e diz que pretende abrir espaço para histórias com olhar feminino - que alcancem também leitores homens.
UNIVERSA - Por que lançar publicações só de mulheres?
DANI COSTA RUSSO - Em 2009, ao tentar publicar meu primeiro livro, tive negativa de todas as editoras para quem enviei o manuscrito do romance "Beijo no Chão". As respostas eram quase sempre as mesmas: "O tema é polêmico e talvez não agrade o público". Já em 2015, depois de me mudar de Vitória para São Paulo, desengavetei a obra para participar de uma premiação e fiquei entre os 20 finalistas. Temos aí um cenário diferente de 2009, o feminismo está em alta no Brasil e temas como a violência doméstica não assustam mais tanto. Ao participar de alguns coletivos de escritoras, fui incentivada a publicar meu livro -o que fiz de forma caseira em 2016. Editei o texto, e trabalhei em todo processo até a sua publicação. Me apaixonei pelo processo de edição e percebi que se nós mulheres não nos colocarmos à frente, poucas de nós estarão nas prateleiras.
Você é autora do livro "Beijos no Chão". Qual foi o melhor e o pior de fazer um livro?
Foi terapêutico, e posso afirmar que, apesar das feridas que ainda carrego, exorcizei o fantasma da violência doméstica que sofri. Já com relação à publicação, o aspecto positivo foi me apaixonar pela profissão de editora depois de trabalhar sozinha. Já negativamente, não soube investir o dinheiro e me endividei. Além disso, a escrita foi muito dolorosa, e tive que me auto-afirmar o tempo todo como escritora, porque acreditava que não era apta a escrever esse tipo de texto.
Por que você decidiu escrever seu primeiro livro sobre violência contra a mulher?
Eu não pensei em escrever sobre violência contra a mulher, e sim sobre a violência que eu vivi. Na época, compreendia que as mulheres sofriam violência, mas não da maneira com a qual eu vivia, entre socos e porradas do meu marido. Escrever, desde nova, era uma prática terapêutica para mim, então decidi escrever sobre essa relação. Comecei escrevendo um conto. Um dia acordei e decidi que ele se tornaria um livro. Na época, eu era repórter e cobria crimes, mas BOs sobre violência doméstica eu era orientada a não escrever, pois em briga de marido e mulher não se metia a colher.
O que relata no romance foi algo que viveu na vida real?
Sim. Estive à beira do feminicídio, quando, no último momento com esse homem, apanhei, e me vi à beira da morte. Apesar das ameaças continuarem, eu reagi e me livre da violência física. No livro, talvez eu tenha amenizado um pouco, porque achava que as pessoas não iam querer ler algo tão violento. A escrita me salvou.
O que você considerou ao selecionar as 15 autoras para publicar?
Levei em conta a qualidade da obra e a trajetória de vida. Os textos precisavam ter aspectos voltados ao olhar da vida da mulher e estar em sintonia com o feminismo. A temática foi fundamental na hora da escolha, no geral busco por aquelas que o público do selo não foi atingido ou que são pouco publicadas no meio editorial. Também levei em consideração o histórico de vida da escritora, sobretudo seu contexto social, pois acredito que a região de origem traz diferentes experiências e linguagens para seus textos.
Sempre me brilham os olhos assuntos que ainda são pouco explorados pelo meio editorial, alguns deles como a solidão da mulher negra e a vida indígena são temas que ainda não recebi. Tenho procurado também por obras com textos em formato de Slam, sempre gostei dos textos.
Qual foi seu principal desafio ao lançar o selo? Como você avalia o desempenho do projeto?
Me deparar com textos em que eu não tenho lugar de fala, ou seja, não vivencio. Por exemplo, precisei estudar muito sobre questões LGBTQ+ para a publicação do primeiro livro do selo. Outro desafio foi explicar o tempo todo que apesar de um selo exclusivo para publicar autoras mulheres não quer dizer que seja uma literatura feita apenas para leitoras mulheres.
O selo se tornou uma rede entre autoras que não se conheciam. O projeto foi além do que eu imaginei. No início, minha meta do ano era aprovar dez livros para edição, com quatro publicados. No entanto, até o fim de 2020 aprovei 13, e seis já foram publicados. Nós não temos ideia, até agora, de quantas obras já foram vendidas, mas a primeira tiragem normalmente é de 50 obras, e as autoras venderam rápido - os livros são vendidos por elas e via site da editora Penalux, responsável pelo selo Auroras.
Há machismo no meio editorial?
Sim, o título "Musa da Flip" [recorrente na cobertura jornalística da Feira Literária Internacional de Paraty], que premia as autoras a partir de sua beleza, é exemplo prático de machismo no meio, pois reafirmam que nossa aparência é mais relevante que nossas obras.
Que livro escrito por uma mulher foi mais inspirador para você durante a pandemia?
"Os Diários de Sylvia Plath" tem me acompanhado nesta pandemia. Em seus textos, em maioria poesia, há um tom lúgubre, no qual aborda sua relação amorosa abusiva. Foi inspirador lê-la, e me motivei a escrever, ainda no início da pandemia, um conto chamado "100 dias com Silvia". No texto a Silvia mora junto com a protagonista, e elas se fortalecem durante o isolamento.
Como, pessoalmente, a pandemia afetou o seu trabalho?
Como estou em transição de carreira, da Dani jornalista para a editora, estudei muito neste período. Mas o início do isolamento não foi fácil. Imaginei conciliar o selo com os trabalhos como freelancer em jornalismo, mas passei a usar a minha reserva financeira e a procurar emprego. Demorei para entender que focar no selo e não me desesperar me ajudaria nas inseguranças em ser editora. Foi ao lançar os três primeiros livros que entendi a importância disso, e me agarrei à nova profissão. Voltei a circular nas ruas quando, em setembro, comecei a trabalhar em mediação de eventos na mesma escola onde me formei como editora.
Que dicas dar para mulheres que queiram escrever, lançar e vender livros?
Forme um público antes de lançar sua obra. Para isso, fortaleça o vínculo com pessoas próximas, amplie a rede e participe de coletivos e movimento de mulheres. Entenda todo o processo do livro até a sua publicação, e busque conhecimento sobre edição. Esse aprendizado te ajudará a criar uma carreira consolidada. Participe de prêmios e antologias que façam sentido para o que você escreve, assim você ganha mais visibilidade e vive novas experiências.
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