Após 20 dias na UTI, atleta de crossfit ajuda quem tem sequelas da covid
A dentista Raquel Trevisi, 39, tinha uma vida de atleta antes da pandemia: não bebia, mantinha uma dieta equilibrada e participava de campeonatos de crossfit. Em setembro do ano passado, no entanto, sentiu um cansaço mais intenso e um exame comprovou o seu maior medo: assim como cerca de 5 milhões de pessoas na época, ela estava com covid. No dia seguinte, foi internada às pressas e só saiu do hospital um mês depois, com graves sequelas da doença.
"Eu me cuidava muito e fazia isolamento social, até os treinos eu realizava em casa", conta a dentista, que não tinha doenças crônicas. "No dia 7 de setembro, eu comecei a me sentir mal, eram muitas dores no corpo, tive febre, e percebi que havia algo muito errado com o meu corpo."
No total, foram 30 dias de internação, 20 deles na UTI. Raquel teve 85% dos pulmões comprometidos, foi intubada duas vezes, teve trombose no braço e na perna e uma infecção.
"Quando me disseram que teria que ser intubada, eu me desesperei, porque pensava que esse era um caminho sem volta. Disse ao médico: 'você tem que prometer que vai me trazer de volta, porque eu tenho dois filhos para criar", lembra, citando os filhos de 8 e 15 anos.
Raquel perdeu 25 kg no hospital e, quando enfim conseguiu receber alta, saiu sem conseguir movimentar o corpo do pescoço para baixo, com uma tetraplegia temporária. Em casa, ela sabia que começava uma nova etapa, marcada por um longo processo de recuperação.
"Agora eu já consigo cuidar dos meus filhos e há um mês voltei a trabalhar, mas em um ritmo muito menor do que antes. Ontem, por exemplo, atendi quatro pacientes; o que antes fazia em duas horas agora faço em um dia, porque me sinto muito cansada", conta a dentista.
Não sou a mesma pessoa e nem almejo ser quem eu era antes. É preciso aceitar que, depois dessa doença, a gente realmente renasce e nada será do mesmo jeito Dentista Raquel Trevisi
Período pós-covid envolveu reaprender a andar
Raquel teve que reaprender a realizar atividades que antes pareciam simples, como caminhar e escrever uma mensagem no celular. "Calculo que, só no primeiro mês fora do hospital, gastei em torno de R$ 10 mil com fisioterapia, nutricionista, remédios e suplementação, entre outras despesas", diz.
Dois meses depois que Raquel saiu do hospital, seu pai, o ortodontista Hugo Trevisi, 72, foi diagnosticado com a doença. Ativo e sem comorbidades, ele faleceu em janeiro deste ano por conta das complicações da doença.
"Foi muito difícil e muito sofrido reviver tudo o que eu tinha passado. Foi uma luta muito grande", conta Raquel, que durante a internação do pai deixou de lado o seu próprio tratamento para apoiar a família.
Dez dias depois da notícia, decidiu investir sua energia no Projeto Com.Vida, ideia que surgiu durante a sua reabilitação, para conectar profissionais de saúde a pacientes de hospitais públicos que, assim como ela, tiveram sequelas graves da covid. "Era como se cuidar da dor dos outros amenizasse a dor de perder o meu pai", conta.
Ela criou projeto para ajudar pessoas pobres com sequelas graves
O objetivo era possibilitar que outros pacientes tivessem cuidado parecido ao que ela teve. Para isso, a dentista fez um chamado nas redes sociais para encontrar profissionais da saúde voluntários que pudessem oferecer, de forma online ou presencial, tratamentos gratuitos de reabilitação para famílias de baixa renda.
"Eu tenho consciência de que fui muito privilegiada, porque tenho apoio da minha família, plano de saúde, fui super bem cuidada por uma equipe maravilhosa e tive dinheiro para pagar as terapias de que precisei. Mas sempre me preocupei com quem não tinha acesso a tudo isso", diz.
Hoje o Projeto Com.Vida tem mais de 80 profissionais voluntários inscritos e atende no momento a 12 famílias. Outros 100 pacientes já realizaram um pré-cadastro para participar de uma triagem realizada pela equipe.
"Eu e um médico analisamos a ficha de cada paciente, observamos se ele se encaixa nos critérios que estabelecemos, porque é impossível atender a todos, e avisamos o grupo de profissionais para ver quem pode atender o caso", conta.
O tratamento é oferecido para pessoas que foram internadas e sofreram sequelas graves da covid. A equipe se compromete a acompanhar a família por ao menos 30 dias. Há profissionais em todo o país, como fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, médicos, enfermeiros e nutricionistas. Por enquanto, a maioria dos atendimentos é feito por telemedicina.
Voluntária virou uma das coordenadoras do projeto
Uma dessas voluntárias é a psicóloga Luciana Deutscher, que virou uma das coordenadoras do projeto. "É muito importante nessa hora ter empatia, poder ajudar o próximo com a minha profissão, com o que eu conheço e o que eu sei fazer", diz.
Ela chegou a desenvolver um protocolo de atendimento específico para pacientes que tiveram a doença, a fim de identificar uma série de problemas psicológicos que podem ser desencadeados pela covid e diferenciá-los de quadros anteriores de depressão e ansiedade.
"Alguns pacientes pós-covid têm alterações neurológicas, relatam alucinações, perda de memória recente e síndrome do pânico, quadro desencadeado pelas sequelas motoras da doença, como não conseguir andar, prender o cabelo ou girar a maçaneta da porta. É frequente que eles tenham problemas emocionais pelo medo de não voltar ao normal", explica a psicóloga.
Além desse tipo de terapia, o projeto também prevê apoio para a realização de exames e gastos com medicamentos.
Agora, Raquel decidiu criar uma instituição com o nome do pai e pretende ampliar o projeto. "Ele sempre me dizia: filha, você tem que contar para as pessoas que a covid pode ter sequelas graves. Se eu conseguir tocar o coração de alguém, essa missão já valeu a pena."
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