"Pivô da separação": a culpa é da mulher que se envolve com homem casado?
"Destruidora de lares", "pivô da separação", "interesseira", "a outra", "vai ser descartada logo", "deu em cima até o cara pegar"... Eis algumas expressões pejorativas dadas àquelas que se envolvem com sujeitos comprometidos.
Por que tanta gente cai matando em cima delas, muitas vezes sem sequer conhecer as circunstâncias em que a relação começou, e pouco julga o homem? Antes de questionar o caráter e a sexualidade dessas mulheres, é importante tentar compreender as razões por trás de tanta crítica através de questionamentos bem incisivos. As descobertas podem ser reveladoras a respeito de quem condena.
Perguntas a se fazer antes de julgar mulheres que se envolvem com caras comprometidos
O julgamento tem viés machista?
Na maioria das situações, tem sim. O machismo estrutural da nossa sociedade patriarcal sempre tolerou a infidelidade masculina, tratando-a como uma característica da natureza do homem: vide piadinhas e ideias estereotipadas como "segurem suas cabras, porque o meu bode está solto", "homem trai mesmo" ou "homem é assim mesmo, não consegue se segurar".
A mesma cultura machista atribuiu papéis dúbios às mulheres: a de submissa, que precisa aceitar as infidelidades, e o de tentadora e "pecadora", responsável por provocar desvios na conduta no homem. Desse modo, garante-se a honra do macho por meio da desmoralização feminina. E, infelizmente, ter um marido ainda é uma "riqueza" cobrada pela sociedade, o que torna o homem um alvo de disputa e valorização.
Você está projetando seus sentimentos em cima de terceiros?
Aqui vale lembrar que quem deve respeito, fidelidade e explicações à parceira, família e comunidade é o homem, não a amante. Ao projetar a culpa na mulher, o machismo é mantido e a "outra" transformada em vilã, mesmo quando ela é vítima e desconhece a realidade do homem. A transferência da culpa para a mulher viabiliza a manutenção do projeto de vida. Evita o contato com a realidade, o desgaste, perdas materiais e a dor da separação.
O mecanismo da projeção também costuma levar as pessoas a interpretarem o que acontece com os outros através de parâmetros próprios. E isso conduz a duas possibilidades: julgar porque tem vontade de fazer o mesmo que a mulher, mas não tem coragem, ou tentar se valorizar ao desqualificá-la.
A situação gerou gatilho e fez com que suas feridas fossem expostas?
Todo ser humano se autoavalia a partir dos outros. Ao analisarmos as falhas nas relações alheias, nos damos conta das rachaduras em nossas próprias relações. Julgar e condenar os outros tem efeito catártico, causa a ilusão de superioridade moral. E, assim como ocorre na projeção, a pessoa pode se doer pela esposa traída e julgar a "vadia" porque gostaria de tomar algumas atitudes na vida, como se livrar de uma relação abusiva ou ruim, mas acha que precisa manter o casamento acima de tudo.
Há algum tipo de identificação com a infidelidade?
Uma das piores dores na vida de uma pessoa é a sensação de ser rejeitada, em qualquer momento da vida. E, de um jeito ou de outro, todo mundo já enfrentou isso em diferentes níveis. É muito fácil, portanto, se identificar com quem está passando por esse tipo de sofrimento e comprar a briga do lado da esposa traída. Há uma espécie de "conexão emocional" por vivenciar, de algum modo, uma decepção semelhante.
Sua opinião tem a ver com a idealização do que é um relacionamento?
Contos de fadas, novelas e filmes românticos nos venderam, desde a infância, um modelo de relacionamento em que um casal se apaixona, se casa e vive feliz para sempre. Esse romantismo exacerbado e pouco realista faz com que muita gente passe a odiar aquela que teve a ousadia de se meter numa relação perfeita - só que a perfeição não existe, trata-se apenas de uma fantasia.
Ao longo da vida, homens e mulheres não permanecem os mesmos da época em que se conheceram ou passaram a morar juntos. Os projetos, os objetivos e os sonhos mudam e as pessoas também. Além disso, há outros fatores em questão: crises, problemas financeiros, mortes na família, doenças, nascimento de filhos... É preciso acabar com essa idealização tóxica e enxergar as pessoas e relações como elas são, com suas falhas e seus dilemas.
Por que a mulher sexualmente livre é condenável?
Por mais que os costumes tenham evoluído, a sexualidade feminina ainda é alvo de repressão, preconceito e tabu. A mulher que é dona dos seus desejos é uma constante ameaça às estruturas morais, culturais e religiosas. A liberdade para buscá-los - como assumir que quer um homem comprometido para se relacionar - e realizá-los ainda assusta homens e mulheres no mundo todo. Execrar essa mulher dona de si é o modo que a sociedade machista encontra para preservar e perpetuar conceitos ultrapassados que ainda passam pano para as atitudes masculinas.
Fontes consultadas: Adelsa Cunha, psicóloga e coautora do livro "Por Todas as Formas de Amor" (Ed. Ágora); Mara Lúcia Madureira, psicóloga, de São José do Rio Preto (SP); Marina Prado Franco, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e Raquel Fernandes Marques, psicóloga da Clínica Anime, em São Paulo (SP)
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