"Luta é para evitar retrocessos", diz Luciana Temer sobre "bolsa estupro"
O Brasil está mais perto de perder o direito ao aborto nos poucos casos previsos por lei do que de garantir o aborto legal, seguro a gratuito para todas as mulheres, acredita Luciana Temer, advogada e presidente do Instituto Liberta, que combate a exploração sexual infantil. Prova disso é o projeto de lei 5435/2020, que tramita no Senado e pode proibir a interrupção da gravidez inclusive em casos de estupro.
Além de forçar a vítima de violência sexual a manter a gestação, o PL propõe que o Estado dê auxílio financeiro para ajudar essa mulher a sustentar a criança, por isso ficou conhecido como "bolsa estupro" — termo que, para a advogada, desvia o foco da proposta.
Em entrevista a Universa, Luciana Temer critica a proposta, que chama de "cavalo de Troia", coloca a proibição do aborto na conta da religião e lembra que a norma é altamente discriminatória, já que prejudica especialmente mulheres pobres e meninas com menos de 14 anos.
UNIVERSA: Por que é tão difícil discutir o aborto no Brasil?
Luciana Temer: A questão do aborto é muito polêmica no país por questões religiosas. O Brasil é um país muito religioso e isso interfere diretamente nas políticas públicas. Não deveria, porque o Estado é laico, mas há interferência, especialmente na questão do aborto. É preciso superar a barreira religiosa para enfrentar a luta pelos direitos reprodutivos.
Parte das propostas apresentadas pelo PL 5435/2020 já estão previstas na lei. Que risco corremos se o texto for a plenário?
Se a gente olhar com atenção, vê que tudo o que a lei traz de proteção à gestante já existe — direito ao pré-natal no SUS, direito de entregar a criança à adoção, responsabilização do pai. Só tem duas novidades: não pode mais abortar em caso de estupro e, se você comprovar que não tem renda, o Estado ajuda com um valor mensal.
Olha só que ardiloso: quando você fala de proibir uma vítima de estupro de abortar, existe alguma resistência. Mas quando você diz que o Estado vai ajudar a manter uma criança gerada em decorrência de um estupro, parece que a lei dá uma opção para a mãe — o que não acontece: a proposta é eliminar o direito ao aborto em caso de estupro.
Se o cerne do projeto é o veto ao aborto inclusive em casos já previstos, por que "bolsa estupro" é o que chama mais atenção no texto, a ponto de virar o apelido do PL?
Eu acho que essa é a intenção de quem redigiu a lei: desviar o foco. Não é por acaso. Quando falamos em "bolsa estupro", desviamos o foco da questão principal, que é a tentativa de revogar o direito ao aborto em casos de estupro.
O que querem passar não é a bolsa estupro, mas a proibição do aborto em caso de estupro — sem mencionar a palavra aborto, que não aparece nenhuma vez no texto. Essa legislação foi mascarada para parecer mais suave, como se fosse um cavalo de Troia, e poderia passar despercebida no meio do caos que vive o Brasil.
E por que é tão perigoso para as mulheres que o aborto continue sendo crime no Brasil?
O aborto pode não ser legalizado, mas é uma prática recorrente e altamente discriminatória, porque a mulher rica faz na clínica com toda a segurança médica e a mulher pobre vai fazer num lugar clandestino, sem os devidos cuidados e com risco de sofrer complicações que podem levar à morte. Esse é o perigo: matar ou punir sempre as mulheres pobres.
Quando eu me declaro a favor da descriminalização, é pelo fim dessa enorme desigualdade de tratamento. Não é uma questão de ser favorável ou não ao aborto, mas de entender que é uma situação de saúde pública, que aprofunda as desigualdades sociais no Brasil.
O que explica tamanha preocupação com o feto em detrimento da vida da menina ou mulher que está grávida?
A gente volta para a questão religiosa, que é muito forte no Brasil, e também para a representação muito pequena de mulheres no parlamento e em outros espaços de poder. O aborto ainda é uma questão muito ligada às mulheres, e a gente tem homens fazendo leis que serão aplicadas às mulheres. Por conta da religião e de convicções pessoais, muitas mulheres não conseguem ser favoráveis à legalização do aborto — a gente deveria saber separar as convicções pessoais das políticas públicas, mas isso não acontece.
A senadora Simone Tebet (MDB/ MS) está escrevendo um texto substitutivo e prometeu retirar o artigo que diz respeito à proibição do aborto em casos de estupro. Mas, se o texto for votado nos termos em que foi apresentado, acredita que seria aprovado, a julgar pelo perfil do Congresso?
Indiscutivelmente, temos um Congresso extremamente conservador.
Nossa luta hoje não é por avanço, mas para evitar retrocessos. Nós temos que brigar pelo pleno direito ao aborto, claro, mas também para evitar que projetos como esse passem. Cabe aos parlamentares, mulheres e homens, entender o tamanho do absurdo e encontrar caminhos possíveis de consenso.
Isso faz parte da arte política.
Vamos imaginar que o PL colocado para votação preveja a bolsa para quem decidir manter a gestação como uma forma de estimular que a mulher não interrompa a gravidez, mas sem proibir o aborto. Eu não acho que seria uma boa prática, mas essa é a minha opinião — de toda forma, seria uma maneira de minimizar os danos da proposta.
Quando a gente fala em estupro no Brasil, parte importante das vítimas são meninas menos de 14 anos. De que forma uma proposta como essa atinge especialmente as meninas?
Essa legislação, se for aprovada, vai atingir a todas as mulheres independentemente da idade — isso significa que meninas menores de 14 anos, que têm o direito ao aborto assegurado no Brasil, não poderão mais abortar. A menina de 10 anos do Espírito Santo [caso que ganhou repercussão em agosto passado] estaria proibida de abortar, por exemplo.
Eu conheço muita gente contrária à legalização do aborto, mas todas elas, quando estão diante de casos de crianças grávidas, pensam diferente, e defendem que seja feito o aborto. No segundo semestre do ano passado, em um período de três meses, 84 meninas com menos de 13 anos deram à luz na cidade de São Paulo. Oitenta e quatro.[o número corresponde a quase um parto por dia]. A gente precisa entender a dimensão da violência contra meninas.
Você faz um trabalho importante de combate à exploração infantil no Instituto Liberta. De que forma esse tema está ligado à proibição do aborto em caso de estupro?
A violência sexual, independente de haver penetração, é uma violência extrema — mas, quando há penetração, pode resultar em uma gravidez, o que é ainda mais cruel, principalmente com meninas, porque a violência se perpetua: por conta da gravidez, essa menina vai deixar a escola, e não terá a formação educacional adequada; portanto, ficará fora do mercado de trabalho e dependerá de um companheiro ou da prostituição para sobreviver. Ou seja, essa roda vai girando, e de uma primeira violência, essa mulher passa a ser violentada a vida inteira. Agora, se você protege a mulher ainda menina, não vai precisar proteger a adulta depois.
Quão perto estamos de perder o direito ao aborto nos casos já previstos por lei?
Muito perto. A sociedade precisa estar atenta e o papel da imprensa, cada vez mais, é não deixar um projeto como esse passar despercebido, colocar isso em pauta. Enquanto esse projeto não for arquivado, a imprensa tem que falar disso todos os dias. Os assuntos vão passando, o que é importante hoje, amanhã ninguém mais lembra, e cai no esquecimento. Quando a gente percebe, o projeto vai ser votado, e não dá mais tempo de pressionar.
E quão longe estamos de legalizar o aborto, como ocorreu na Argentina, por exemplo?
Isso nem se fala, está longe. Volto a dizer: agora a gente tem que focar em evitar os retrocessos. E não é só em projeto de lei que a gente perde direitos. Por exemplo: existiam políticas públicas de atendimento às vítimas de violência sexual sem burocracia, baseada na autodeclaração da vítima — a mulher declara que foi estuprada e pode realizar o aborto. Isso está se perdendo, o processo foi dificultando, dificultando, e foi desidratado na surdina, dentro dos hospitais, sem ninguém perceber. O cavalo de troia passou. Volto a dizer: precisamos preservar os direitos já conquistados.
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