1ª técnica a vencer Libertadores: "Homens ainda querem me ensinar futebol"
Há exatamente uma semana, a Ferroviária, clube de futebol de Araraquara, comemorava seu segundo campeonato na Copa Libertadores da América. Mas Lindsay Camila, treinadora do clube, celebrava um segundo feito, ainda maior: ela se tornou a primeira mulher a comandar um time brasileiro campeão do torneio sulamericano.
Em entrevista a Universa, a técnica de 38 anos, nascida em Campinas, conta como o machismo a acompanhou em mais de 25 anos de futebol, desde as quadras da escola, onde sofreu bullying por jogar com os meninos, até o Lyon, na França, onde viu metade dos atletas deixar a equipe ao saber que seriam treinados por uma mulher.
Até hoje, recebe mensagens de amigos homens que querem ensiná-la a treinar: "Será que alguém manda isso pro Abel Ferreira [técnico do Palmeiras]? Ou pro Jorge Jesus [ex-técnico do Flamengo]?", questiona.
UNIVERSA: Quando estava na final, sabia que poderia ser a primeira mulher a comandar um time vencedor da Libertadores? Como se sentiu ao atingir a marca?
Lindsay Camila: Sabia. Ainda estou processando tudo isso. Eu estava muito nervosa, dormindo duas ou três horas por noite, mas tinha muita confiança no resultado. Bastante gente me mandou mensagem falando disso antes de jogo, mas não era hora de pensar na Lindsay, eu tinha que pensar no clube e nas minhas atletas. Sempre que essas mensagens chegavam, dizendo "olha só, você pode fazer história", eu tentava não prestar atenção, porque não queria que interferisse. Mas depois, quando de fato aconteceu, comemorei muito. Se não acontecesse comigo seria questão de tempo até que uma treinadora mulher levasse o título, -- mas que bom que fui eu.
Você já treinou times masculinos. Como era recebida? Enfrentou resistência dos jogadores?
Quando eu cheguei à França, meu primeiro time era de sub-15 masculino, então foi tranquilo, porque eu falo firme, e sei lidar com adolescentes.
No adulto foi diferente: era uma categoria semiprofissional e, quando cheguei, mais da metade dos jogadores deixou o clube. Cheguei em casa, chorei, chorei, chorei, mas passaram quatro semanas e eu tinha mais de 40 novos atletas querendo jogar. Eles viram que eu era uma pessoa séria, tinha uma proposta de treino boa e entendia do que eu estava falando.
Tive um atleta que queria gritar comigo, falar mais alto que eu. Um dia, subiu o tom comigo porque tinha sido substituído no jogo, e por um erro dele. Mandei embora. O presidente do clube pediu que eu desse outra chance, mas comigo ele não jogou mais.
Sente que, como mulher, precisa ficar provando sua capacidade para ser aceita no futebol?
Muito. Recebo mensagens de homens próximos, que são muito queridos, mas querem me ensinar a treinar meu time. "Olha, você tem que posicionar o time assim, tem que jogar de tal maneira".
Por ser mulher, acham que não sei. Poxa, eu sou treinadora desde 2006, tem 15 anos que faço isso. Não comecei ontem.
Depois de ganhar a Libertadores, inclusive, recebi conselhos sobre como eu deveria me comportar, o que eu tinha que fazer. Eu respondo "tá bom, pode deixar". Não levo a mal, porque sei que não é por maldade, mas e se fosse um homem? Será que alguém mandou isso pro Abel Ferreira [técnico do Palmeiras]? Ou pro Jorge Jesus, quando o Flamengo ganhou em 2019?
Você se considera feminista?
Sim. O que eu cobro, como feminista, é ter os mesmos direitos para mulheres no mercado do futebol. Os mesmos salários, as mesmas oportunidades, o direito de me expressar, e até de poder falar meus palavrões em paz. Essa é a minha bandeira.
Nós estamos muito atrasadas em relação ao futebol masculino porque ficamos 40 anos sem poder praticar [no Brasil, mulheres foram proibidas de jogar futebol entre 1941 e 1983]. São 40 anos sem treinar, sem jogar Copa do Mundo, sem competições. Vejo as pessoas comentando que futebol feminino é ruim porque tem placar elástico. Aí eu respondo: o masculino perdeu de 7x1 na Copa [para a Alemanha, em 2014]. A gente não pode julgar a modalidade porque o placar é elástico. Isso está ligado à estrutura física e financeira dos clubes — e minha bandeira é que o futebol consiga dar condições iguais aos times masculinos e femininos.
No seu currículo, há clubes em Dubai, França e Luxemburgo. É muito diferente ser mulher no futebol em outros países?
O sulmaericano em geral é muito machista. É um povo muito crente no futebol e essa fé carrega o preconceito de que mulher não pode jogar, tem que ficar em casa, submissa. Eu tenho fé, vou à igreja, mas percebo como isso interfere.
Em Dubai é a mesma coisa. Por ser um país muçulmano, com muitas restrições para as mulheres, esse machismo é muito grande no futebol. Na Europa, onde os países são realmente laicos na prática, a igualdade de gênero é um pouquinho maior do que aqui. Nos Estados Unidos também: por ser um esporte barato, meninos e meninas costumam treinar futebol desde cedo. O Brasil é, com certeza, o país mais machista em que já trabalhei.
Você começou no futebol aos 12 anos, como jogadora. O cenário melhorou de lá para cá?
O futebol me pegou muito jovem, mesmo. Na época em que comecei a jogar, não existia base. Minha base foi jogando na rua, com meus primos -- rua de baixo contra rua de cima. Depois comecei a jogar com meninas mais velhas mesmo, porque era o time feminino que existia. Melhorou muito. Hoje temos campeonato de base, calendário fixo, mais jogos, mais rodadas. E premiação, o que é muito importante.
A evolução é grande, mas ainda temos muito a melhorar. Sou otimista porque temos nomes muito competentes tomando conta do futebol feminino: a Duda [Luizelli, à frente da Coordenação da Seleção Brasileira Feminina], a Aline [Pelegrino, à frente da Coordenação de Competições Femininas]. A Europa é o nosso norte, é para lá que temos que mirar: salários mais altos e jogos televisionados, nos mesmos estádios do masculino.
E por que ainda não chegamos lá? Onde começa o problema?
Na adolescência, na escola. Para você ter uma ideia, eu era a única menina a jogar bola em toda a minha vida escolar. Na adolescência, aquela fase em que tudo é o fim do mundo, a pressão é muito grande -- e por isso perdemos muitas meninas que poderiam se tornar grandes atletas. É a idade da zoação. Hoje existe a palavra bullying, mas na minha época eu já ouvia muita música pejorativa, piadinha, porque estava jogando no meio dos homens. Eu tinha um incentivo muito grande na família, e isso foi muito importante, porque eu conseguia falar "dane-se" e continuar jogando. Quando pai e mãe não dá suporte, a menina não aguenta a barra pesada e desiste de jogar.
Mais de uma vez, aconteceu de eu gostar de um menino e não dar certo porque eu jogava bola, e ele tinha vergonha. Claro que eu ficava triste, mas isso nunca foi mais forte que o futebol. Teve um que falou: "ou a bola, ou eu". Até hoje ele está esperando.
Tem esperança que isso mude? Acha que sua vitória, no último domingo, passa um recado importante para meninas que sonham em viver de futebol?
Acho que abre portas, com certeza. Se hoje eu estou aqui, podendo trabalhar e viver do futebol, foi graças às mulheres que vieram antes. E vai ser melhor para as próximas treinadoras.
Ainda não é uma situação [financeira] tão boa, está muito longe dos salários do masculino, mas eu posso viver disso, minhas atletas todas podem viver disso, as preparadoras, fisioterapeutas — são todas mulheres que estudaram muito, se prepararam muito, e estão vivendo só de futebol, olha que maravilha. A Pia [Sundhage, técnica da seleção brasileira de futebol feminino] é nosso maior exemplo. Por isso eu vejo uma luz que começa a brilhar mais forte no final desse túnel.
De que forma a pandemia e a paralisação dos jogos afetam especialmente os clubes femininos? A Ferroviária foi afetada pela covid?
Impacta mais nos clubes pequenos, acredito. O nosso feminino não teve nenhum caso de covid-19. Estamos passando pelo pior momento da pandemia, as meninas todas moram com a família, a gente viajou para jogar, mas não tivemos nenhum caso. Mantivemos a máscara o tempo todo e ninguém saiu para jantar em cassino lotado porque estava de folga [Lindsay se refere ao jogador Gabigol, do Flamengo, que foi detido há duas semanas em um cassino lotado, em São Paulo].
Nesse sentido, a cobrança no feminino é muito maior. Quando as meninas estão de folga, ninguém sai de casa. Existe uma responsabilidade maior. As meninas se cobram muito porque sabem que precisam dar exemplo. A gente dá muito valor a essa responsabilidade porque sabe que depende disso, porque ninguém aqui tem salário milionário.
Um dos donos da Ferroviária é o Saul Klein, empresário denunciado por de aliciar e estuprar pelo menos 32 mulheres. O caso abalou o time? Como você recebeu as notícias?
Eu cheguei em janeiro ao clube. Quando tudo isso estourou [em dezembro], eu estava fora do Brasil. Então, não sou capaz de te falar nada, porque eu não fazia parte da Ferroviária -- e que bom, porque assim posso ser verdadeira quando falo do assunto. De toda forma, o caso não chegou até nós, nem sei em que pé estão as coisas.
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