Diretora faz filme sobre a batalha de lésbicas para engravidar na Itália
Se no Brasil famílias homoafetivas ainda lutam para colocar em prática direitos garantidos por lei, na Itália nem com o reconhecimento do Estado gays e lésbicas podem contar na hora de ter um filho. Essa realidade é o pano de fundo do filme "Mãe+Mãe", lançado em 2018, mas que chega agora ao Brasil, disponível na plataforma de streaming Supo Mungam Plus.
Na trama, que conta a história real da diretora Karole di Tommaso, o casal de protagonistas enfrenta uma verdadeira batalha até a gravidez, com diversas viagens à Espanha, onde é permitida a reprodução assistida para casais do mesmo sexo, tentativas de fertilização frustradas e dificuldades financeiras para custear passagens e procedimentos médicos.
Em entrevista a Universa, Karole — a diretora, e não a personagem que leva seu nome — conta como a maternidade foi uma "revolução pessoal" e relata as dificuldades de cuidar da família em um país que nem sequer dá a ela direitos de mãe sobre seu filho que tem quase cinco anos.
UNIVERSA: Quando você percebeu que sua história daria um bom roteiro de filme? E por que você decidiu produzi-lo?
Karole di Tommaso: Uma das primeiras coisas que enfrentei internamente na adolescência foi isso: desistir da procriação. Eu achava que nunca poderia ter um filho. Embora ainda haja muito para conquistar [em termos de direitos LGBTQIA+], no final dos anos 1990 as coisas eram muito piores. Os direitos de todos os homossexuais no mundo eram mantidos em silêncio — eles eram gritados, mas não foram ouvidos por muitos anos.
Desde que eu e minha companheira começamos a pensar em ter um filho, pensei que esse poderia ser o tema do meu primeiro filme. Quinze anos depois, a ideia de me tornar mãe foi uma revolução pessoal. Eu tinha apenas 28 anos e o enorme turbilhão de medos, alegrias e tristezas era o ingrediente essencial para transformar minha história numa história de todos, que pode fazer refletir, sorrir e — por que não? — comover.
O fiel é fiel ao que aconteceu na sua vida? E qual cena mais te emocionou?
A verdade não é tudo o que importa em uma história, mas, de toda forma, o filme é totalmente autêntico. Todo mundo que aparece ali cerca a minha vida: meu avô, minhas tias, minhas vizinhas, minha mãe — e foi com ela a cena mais difícil. Não contei a ela tudo quando estava no banheiro [no filme, Karole revela a sexualidade à mãe enquanto toma banho], mas, na vida real, essa cena foi tão emocionante que esqueci onde aconteceu. E filmar esse momento foi cansativo, porque a tensão emocional no set era muito grande. Eu revivi aquele momento e forcei minha mãe a revivê-lo também
Você faz uma ponta como uma médica, quando Karole insemina a companheira com uma seringa na clínica de fertilização. Por que escolheu essa cena para participar?
A cena da inseminação é equivalente a uma cena de amor romântico em que duas pessoas do sexo oposto decidem dar à luz um filho, não é apenas um gesto médico. Ali, eu quis entregar minhas próprias emoções às atrizes principais [Linda Caridi e Maria Roveran].
Durante as filmagens, meu filho tinha seis meses. Queria desejar boa sorte a todas as pessoas que, vendo o filme, sonham ou já sonharam em ter um filho, mesmo sem que suas famílias sejam reconhecidas pelo Estado.
O filme mostra a resistência na Itália às famílias homoafetivas. Você sofreu preconceito ao longo da sua vida?
As histórias italianas são, infelizmente, as histórias de todo o mundo. Pessoas não querem ver e nem compreender a nossa realidade. Pode doer simplesmente usar palavras que não são inclusivas, ou que ofendem mesmo sem intenção.
Saber se comunicar sem ofender é o primeiro passo para a liberdade, mas, infelizmente, isso não acontece. Lembro com muito pesar do dia em que uma menina muito jovem chamou meu filho de 'bastardinho.
Como costuma reagir a esse tipo de comentário?
Eu geralmente rio. Quando estou de bom humor, respondo com calma a todas as perguntas para mostrar como é tudo muito normal.
O que explica a Itália ser resistente às famílias homoafetivas em comparação a países como Espanha e França?
O peso político do Vaticano. Uma das últimas declarações do papa foi sobre a impossibilidade de a Igreja abençoar as uniões de casais homoafetivos.
Para mim, que moro a poucos quilômetros da Basílica de São Pedro, não é preciso nem ligar o rádio, a TV ou a internet para receber essas notícias, elas chegam por osmose. Até pelo interfone dos prédios. Não é brincadeira, as antenas das rádios do Vaticano são tão potentes que interferem nos interfones de alguns bairros de Roma. Parece cena de filme, mas não é.
Você e Ali tiveram dificuldade para custear a inseminação feita em Barcelona. Esta é a realidade dos casais de lésbicas que desejam engravidar na Itália?
Sim. Essa é, infelizmente, a única solução possível para um casal como nós. Você pode encontrar médicos que praticam inseminação na Itália assumindo a responsabilidade de violar a lei, mas nós não encontramos nenhum. Essas práticas são muito caras, viajar é caro e, para duas meninas de classe média, trabalhar em dois ou três empregos é a única maneira de arcar com isso — e foi o que fizemos. Para quem tem recursos econômicos diferentes, talvez não seja necessário trabalhar o triplo, mas, de toda forma, não é uma trajetória simples: é preciso arregaçar as mangas para realizar esse sonho.
A Itália reconheceu uma adoção por um casal homoafetivo pela primeira vez em 2017, enquanto você filmava "Mãe+Mãe". O país está caminhando em direção à igualdade de direitos?
A Itália está se mexendo, mas acredito que estamos destinados a continuar essas batalhas por muito tempo. Há muito a se fazer. Acolhi essa notícia, em 2017, com muita esperança — a mesma esperança que coloco em um desfecho positivo para a adoção do meu filho. Ele vai completar cinco anos, mas eu ainda não tenho direitos de mãe reconhecidos.
Qual foi a reação do público e da crítica ao filme?
Ele foi muito bem recebido pela crítica e teve uma ampla trajetória internacional, o que me deixou muito feliz. Apesar disso, na Itália, até hoje, não está em nenhuma plataforma de streaming, o que é difícil de entender.
No dia da estreia mundial, no Festival de Cinema de Roma, a cidade estava tomada por uma campanha pró-vida contra famílias homossexuais, nunca vou me esquecer. Ali, soube que tinha feito a coisa certa.
Os cinemas estavam sempre lotados, e as pessoas ficavam e conversavam comigo depois da exibição, tanto sobre o filme quanto sobre experiências pessoas de maternidade ou paternidade homoafetiva. Certamente havia, na plateia, pessoas que pensavam diferente, mas talvez fossem minoria, e ninguém disse nada.
No Brasil, ainda há pouca representação LGBT em filmes e na TV. Acredita que a forma como o cinema nos representa está mudando?
A representação de personagens LGBTQIA+ também é minoritária na Itália e acontece de dois jeitos: ou é usada como cota, em personagens secundários de tramas de maioria masculina hétero, ou são protagonistas gays e lésbicas "que não assustam ninguém", que estão dentro de determinado padrão de comportamento. Quase ninguém produz filmes sobre transexuais na Itália, por exemplo.
Uma verdadeira revolução seria construir personagens profundos, com dilemas, e que ser gay ou lésbica ou transexual seja apenas um detalhe de sua personalidade. Nós não deveríamos precisar ser superheróis para sermos retratados ou aceitos. Devíamos ter o direito de ser pessoas comuns.
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