Vítimas de Abdelmassih ainda buscam embriões: "Ainda sinto o cheiro dele"
A advogada Lilianne Gallo, 59, e a estilista e escritora Vana Lopes, 60, de São Paulo, nunca conseguiram engravidar de forma natural. Resolveram, na década de 1990, procurar a clínica do maior especialista em reprodução assistida do país àquela época: Roger Abdelmassih.
Saíram de lá abusadas e estupradas e sem seus embriões. Até hoje não sabem o que aconteceu com o material. "Ficaram 8 ou 16 embriões meus na clínica. Não sei se algum dia vamos reaver esse material, mas seria um direito nosso", afirma Lilianne, que passou pelo tratamento em 1998.
O ex-médico foi condenado a mais de 173 anos de prisão por ter estuprado pacientes e cumpre sua pena no presídio de Tremembé (SP).
Em fevereiro, a CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) decidiu julgar o Brasil por omissões praticadas no caso Abdelmassih, incluindo o sumiço de embriões, óvulos e sêmen de pacientes. Pacientes como Lilianne e Vana estão há mais de 20 anos sem respostas, e a CIDH vai justamente analisar a falta de uma legislação para punir médicos que ajam de maneira errada na manipulação e armazenamento de embriões.
O órgão verificará ainda a violação dos direitos de sete vítimas de Abdelmassih cujos casos foram considerados prescritos pela Justiça, como o da própria Vana. Ela foi estuprada em 93 e quando o ex-médico foi condenado em 2010 o crime estava fora do prazo de prescrição, que é de 16 anos. Quando o criminoso tem mais de 70 anos, esse tempo é ainda reduzido pela metade, ou seja, para oito anos.
Mas nem todo material genético está desaparecido. O filho de Roger, Vicente Ghilardi, que era seu assistente na famosa clínica em bairro nobre de São Paulo, disse a Universa que mantém material congelado pelo padrasto até 2009 e que enviou carta para o CRM (Conselho Regional de Medicina) solicitando uma diretriz sobre o que fazer com ele, mas ainda não obteve retorno.
Numa entrevista ao "Fantástico" (Globo) em 2014, ele afirmou que entregou uma lista com os nomes dos donos dos 2 mil embriões guardados na clínica de Abdelmassih.
Segundo o último relatório da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em 2019 o Brasil tinha 183 centros de reprodução humana assistida e somava 99.112 embriões congelados, um aumento de 11,6% em relação a 2018. Em 2012, esse número era de 32.181.
Triste coincidência deu falsa esperança à vítima
Dois meses antes da decisão da CIDH, a advogada Lilianne Gallo reviveu a esperança de encontrar seus embriões. Numa troca de mensagens ocorridas em dezembro, às quais Universa teve acesso, uma clínica localizada em São Bernardo do Campo (SP) informou que o material genético dela estava guardado no local. E que era preciso renovar a taxa de congelamento de R$ 730 para o período de dezembro de 2020 a maio de 2021. Surpresa, ela respondeu que até pagaria, mas queria saber como os embriões haviam parado no local. E descobriu que a paciente em questão tinha o mesmo sobrenome que o dela.
"Vivi a parte nojenta dele me agarrando"
Lilianne procurou a clínica de Roger em 1998 para conseguir engravidar e, por três tentativas, pagou, à época, três parcelas de 14 mil dólares. Ela diz que foi bem tratada, mas estranhava o fato de ele nunca ter deixado o marido entrar na sala de ultrassonografia. Até virar sua vítima.
Vivi a parte nojenta dele me agarrando. Eu estava acordando da anestesia e ele tentando me beijar. Juro que ainda sinto o cheiro da saliva dele de tão forte que foi o impacto emocional na época."
Ela e o marido preferiram não contar nada a ninguém nem denunciar o ex-médico, por medo da exposição. Hoje, Lilianne tem dois filhos adotivos, de 21 e 22 anos.
O que diz a Anvisa sobre os embriões
De fato, o Brasil não tem uma lei específica sobre o tema. Fica a cargo da Anvisa criar padrões mínimos de boas práticas. E são as vigilâncias sanitárias locais (estadual, municipal ou distrital) que vão cuidar das atividades de licenciamento sanitário, inspeção/fiscalização periódica e monitoramento dos estabelecimentos que atuam com reprodução assistida.
Para a Anvisa e o CFM (Conselho Federal de Medicina), caso um BCTG (Banco de Células e Tecidos Germinativos) encerre suas atividades, o destino das células, tecidos germinativos e embriões criopreservados (congelados) fica sob a guarda de um responsável legal, que deverá garantir que a documentação do casal/doador seja mantida por um período mínimo de 20 anos.
E ainda: os pacientes com amostras/embriões criopreservados devem assinar um termo de consentimento livre e esclarecido específico, prevendo o destino do material — que pode ser descartado ou doado. Uma norma do CFM diz ainda que os embriões com mais de cinco anos poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança.
Foi pensando na criação de uma legislação acerca de reprodução assistida, e também lutar contra a prescrição para crime sexual que sete vítimas de Adelmassih procuraram a Corte Interamericana de Direitos Humanos, como explica Vana Lopes, que criou uma associação com outras pacientes estupradas pelo médico, a "Vítimas Unidas".
A reprodução assistida é um consolo às pessoas que não conseguem engravidar, e com o avanço dela é preciso que também se avance com leis que protejam os casais e puna quem faça algum procedimento irregular. Minha esperança com essa ação na CIDH é ajudar os casais que, como eu, foram vítimas tanto da violência sexual quanto da genética, porque ele sumiu com nossos embriões. Não desejamos isso para nenhuma outra família."
Brasil cumpre orientações jurídicas internacionais
Qualquer pessoa pode acionar a CIDH, que é um órgão autônomo da OEA (Organização dos Estados Americanos), desde que todos os recursos na Justiça tenham sido esgotados no Brasil. E quando a corte decide analisar o caso, ela participa de audiências com o representante da vítima, outro do Estado e especialistas no tema. Quando ela pune o país, ele precisa atender a demandas como pagamento de indenização às vítimas e propor reformas institucionais.
Nesse caso de Abdelmassih, o advogado das vítimas, Martim Sampaio, pediu que seja criado um fundo de reparo a essas mulheres, além de uma legislação específica que proteja as pessoas que procuram clínicas de fertilização. "A Lei Maria da Penha foi criada após uma decisão da Corte, então esperamos que aconteça o mesmo nesse caso", diz Sampaio.
A vice-presidente da CIDH, Flavia Piovesan, diz a Universa que o Brasil tem cumprido com as determinações do órgão. "Os Estados devem honrar suas obrigações jurídicas internacionais. É como se fosse o Judiciário da OEA, e o Brasil, na maioria das vezes, tem cumprido com isso. Caso contrário, se tornará um pária no âmbito internacional."
Filho de Abdelmassih diz aguardar decisão do Conselho Regional de Medicina sobre embriões que continuam armazenados
Abdelmassih foi proibido de exercer a medicina em 2009 e teve sua clínica interditada. Segundo a Anvisa, após seu fechamento e a transferência do material ali guardado para a clínica de Vicente Ghilardi, a Embryo Fetus, restou apenas uma planilha em Excel com dados de pacientes do ex-médico, "de veracidade duvidosa".
Por isso, aponta a agência, a confirmação da identidade dos embriões que estavam congelados e dos seus donos ficou comprometida. A veracidade só poderia ser comprovada por meio de testes genéticos, o que compromete a viabilidade dos embriões armazenados.
A Secretaria Municipal da Saúde informou a Universa que a clínica Embryo Fetus, de Ghilardi, foi inspecionada e autuada em 2014, quando apurado que faltava rastreabilidade das amostras sob sua responsabilidade. Por e-mail, ele, que era médico assistente do padrasto na época, confirma que ainda mantém todo material genético congelado da clínica do Dr. Roger até dezembro de 2009, e por um custo muito alto.
"Vale ressaltar que apesar de várias tentativas de contato com essas pacientes, já que envolve custos de manutenção, não obtivemos êxito. E esse material ainda está sendo mantido congelado, apesar da resolução atual do CFM que diz que embriões em situação de abandono por parte do paciente podem ser descartados. Enviei carta para o CRM, solicitando uma diretriz ou uma autorização, sobre o que fazer, mas até agora não me responderam", ele diz.
Questionado por e-mail, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) informou apenas que "todas as investigações sobre este assunto tramitam sob sigilo determinado por lei".
"Resoluções são satisfatórias"
A presidente da Rede Latino Americana de Reprodução Assistida Maria do Carmo Borges de Souza diz que as resoluções sobre a reprodução assistida "são bastante satisfatórias e incluem também sanções éticas e possibilidade de restrições em caso de descumprimento".
Ela, que também é diretora e membro do Conselho Consultivo da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, diz ainda que as pacientes precisam saber do destino de seus embriões.
"O fato de mulheres que tiveram seus direitos e seu material genético sem informação adequada de destino ou manutenção não esclarecidos é uma questão que extrapola a conduta médica, interessando ao âmbito judicial. Desta forma, não há uma falta de normas, mas uma lacuna de informações. As pacientes têm o direito de solicitar estas informações e a Corte que buscaram vai estabelecer o parecer que julgar adequado. É uma Corte maior", finaliza.
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