Foragido: atriz argentina que acusa ator de estupro pede justiça no Brasil
O MPF (Ministério Público Federal do Brasil) apresentou uma denúncia contra o ator argentino-brasileiro Juan Darthés , 56, pelo estupro do qual é acusado por Thelma Fardin, 28. A atriz acusa Darthés, famoso por ter feitos diversas novelas argentinas, de tê-la violado em 2009, na Nicarágua, durante a turnê internacional de um programa infantil no qual os dois atuavam. À época, ela tinha 16 anos, e ele, 45.
Ao denunciar publicamente o ator, Fardin deu início ao movimento #MeToo na Argentina em 2018. Outras quatro atrizes acusam Darthés de estupro.
Após a revelação de Fardin, a promotoria da Nicarágua denunciou o ator e pediu sua prisão e captura internacional. Darthés então fugiu da Argentina e está foragido no Brasil, onde nasceu. Na época, atrizes brasileiras, como Bruna Linzmeyer e Débora Falabella, iniciaram uma manifestação contra a vinda do ator ao país.
Com a colaboração do Ministério público argentino, a Justiça nicaraguense iniciou um processo penal contra Darthés e ordenou sua captura internacional e extradição. A Interpol também emitiu um alerta vermelho contra o ator.
Com a decisão do MPF, abre-se a possibilidade de Darthés ser julgado no Brasil — pela Constituição, o país não pode extraditar seus cidadãos, mas o Código Penal prevê que estes sejam julgados em território brasileiro por crimes cometidos no exterior. Tanto o pedido de captura quanto o de extradição do ator permanecem vigentes.
"Espero que a mensagem enviada pelo Brasil, não somente nesse caso particular, seja a de que o Brasil não pode servir de refúgio e de esconderijo para estupradores, ainda mais para um estuprador com pedido de captura internacional", disse Fardin a Universa, nesta quarta (7), em Buenos Aires, após um evento para anunciar a decisão do MPF.
A atriz falou com exclusividade a Universa sobre a expectativa de que Darthés seja enfim julgado e de como a organização coletiva de mulheres permitiu que ela pudesse denunciar o crime cometido por seu então colega de trabalho.
UNIVERSA - Sua denúncia deu voz a outras vítimas de estupro, mas também produziu uma dor muito pessoal. Como você equilibra as duas facetas desse processo?
THELMA FARDIN - O que me dá forças para seguir em frente é a mobilização das mulheres. Nesse sentido, a pandemia foi muito difícil, porque perdemos esses lugares de encontro, a rua, que é o nosso lugar histórico como movimento feminista. Foi nesse momento que eu percebi o quanto era importante a organização coletiva. Também é muito difícil se tornar referência nesse assunto, tanto de maneira pessoal como coletiva. Por mais que não tenham sido vítimas, as minhas companheiras também estão identificadas com o processo e recebemos denúncias de mulheres desesperadas e de mães que querem proteger suas filhas.
Nesses momentos, vejo a impunidade que existe em outros casos e penso que eu tive a possibilidade de avançar em diferentes países: na Nicarágua, com sua particularidade política, na Argentina, onde o Ministério Público gerou, produziu e contribuiu com as provas, e no Brasil, em um momento político também especial, quando a gente sabe que o que acontece nas instituições de Estado tem impacto na sociedade.
Ao compreender o momento político brasileiro, eu acreditava que fosse muito difícil ver um avanço no processo. E apesar dessas dificuldades, ter visto a decisão do Ministério Público brasileiro de fazer a denúncia de ofício é uma das coisas que me dá força para seguir em frente. Ao mesmo tempo, minha vida continua.
Mas, sem dúvidas, essa situação me demanda energia. Os momentos mais difíceis são quando eu preciso prestar depoimentos ou passar por exames. No entanto, é muito poderoso dar um passo nesse caso particular que ao mesmo tempo tem um impacto coletivo.
Você disse que as instituições chegam sempre um pouco depois que a sociedade. Qual foi a importância do contexto argentino para que você pudesse fazer a denúncia?
Apesar de todo meu desejo de fazer algo em relação ao que vivi, só pude pegar esse avião e fazer a denúncia na Nicarágua graças à organização coletiva feminina, somos muito boas construindo alianças. E foi por meio dessas alianças que conseguimos fazer conexões em diferentes países. Cada companheira do Coletivo de Atrizes Argentinas colocou suas forças pessoais à disposição da luta coletiva.
Fomos ensinadas a competir entre nós, ainda mais no nosso ambiente de trabalho, mas a grande saída do labirinto foi ver que não só não estamos em disputa, mas sim estamos unidas. É a famosa história de dividir para conquistar, quando estávamos divididas estávamos também muito mais submissas.
Juan Darthés já havia sido acusado por outras atrizes de abuso, mas seu caso foi capaz de gerar essa união. A que você atribui isso?
Não é possível entender isso sem olhar para o fenômeno histórico. Em 2015, a Argentina viu surgir o Ni Una Menos (Nenhuma a Menos, que combate o feminicídio); em 2018 houve um debate muito profundo sobre o aborto legal, seguro e gratuito. Mesmo que naquele ano a gente não tenha conseguido conquistar a lei, a discussão era mais ampla e tinha a ver com a conquista de direitos e de soberania sobre nossos corpos, o que está implícito quando falamos de abuso. O movimento #MeToo, nos Estados Unidos, é muito conhecido por conta da capacidade de repercutir, mas é importante falar das conquistas do movimento de mulheres na América Latina, por exemplo, na Colômbia, com o A Mí También me Pasó (Também aconteceu comigo).
Há algo muito forte na identificação com esse tipo de crime. Muitas vezes é difícil reconhecer quando acontece com a gente, mas quando outra mulher consegue colocá-lo em palavras, acontece algo internamente que permite articular um discurso e compreender a violência a que foi submetida. Então o que me permitiu dizer que eu tinha sido vítima foi ter ouvido muitíssimas denúncias que outras companheiras fizeram e ter visto que elas nunca tinham conseguido levá-lo à Justiça.
A partir do reconhecimento como vítima de abuso, é possível ir mudando essa percepção e começar a se reconhecer de outra maneira?
Foi como mulher que eu reconheci a violência a que fui submetida quando era uma menina de 16 anos. Foi a mulher que saiu em resgate da adolescente e isso é também o que eu gostaria de representar para outras meninas e adolescentes que atravessam uma situação assim.
Me reconhecer como vítima foi muito poderoso assim como dar um novo lugar à categoria de vítima. Nós obrigamos a vergonha a atravessar a rua e mudar de calçada. As vítimas ficavam com a vergonha, e os algozes caminhavam por aí como se nada tivesse acontecido. Nós não sentimos mais vergonha por ter sofrido abuso, agora quem tem vergonha são eles.
Você mencionou a situação política do Brasil. Acredita que há espaço para avançar com um processo que surge com a organização coletiva e feminista?
Compreendo que a legislação brasileira não permite que o Brasil extradite seus cidadãos, mas não pode haver impunidade. Já há um processo iniciado pela Justiça nicaraguense, um pedido de extradição, e Darthés tem que ser julgado onde isso for possível —-mesmo que seja desgastante para mim, porque implica viajar a outros países. No entanto, eu sigo aqui, a serviço da Justiça, porque nesse tipo de delito o principal território de provas são as próprias vítimas, mesmo com toda a revitimização que isso traz.
Então eu espero que a mensagem enviada pelo Brasil, não somente nesse caso particular, é a de que o país não pode servir de refúgio e de esconderijo para estupradores, ainda menos para um estuprador com pedido de captura internacional.
Se ele permanecer foragido no Brasil e não for julgado, a mensagem enviada às mulheres e às crianças, principalmente às brasileiras, será desoladora. Hoje eu sou uma mulher, mas quando o abuso aconteceu eu tinha 16 anos, em um contexto em que ele tinha poder sobre mim — não só por ser 29 anos mais velho, mas porque era um dos protagonistas da novela que fazíamos juntos.
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