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AD Junior: "Negrocard é falar que avó é negra para dizer que não é racista"

AD Junior é comunicador e head marketing do canal de TV fechada Trace Brasil e tem 195 mil seguidores no Instagram - Divulgação/Vitor Vieira
AD Junior é comunicador e head marketing do canal de TV fechada Trace Brasil e tem 195 mil seguidores no Instagram Imagem: Divulgação/Vitor Vieira

Nathália Geraldo

De Universa

08/04/2021 04h00

Para o comunicador e apresentador AD Junior, 34 anos, o papo sobre racismo estrutural que veio à tona nos últimos meses, principalmente com a onda antirracista após o assassinato de George Floyd, é algo em discussão há pelo menos 13 anos, quando passou a escrever postagens sobre negritude no Orkut.

No início, ele queria mesmo era falar de viagem. Mas, sendo um homem negro, recebeu mensagens de tom racista nos seus primeiros vídeos para o YouTube sobre o tema: "Quem é esse neguinho que está falando disso aí?". Percebeu, então, que precisaria direcionar o conteúdo para falar das dores e também das realizações de pessoas negras — tanto que ele tem uma série de vídeos em que apresenta algumas personalidades negras brasileiras que não são tão valorizadas pela história quando deveriam.

Head de marketing do canal de TV fechada Trace Brasil, focado na cultura negra, AD Junior, que foi estudar na Alemanha e divide a vida entre o Brasil e o país desde 2008, também fala de BBB, casos de racismo que pipocam na mídia, beleza negra e fatos históricos em suas redes sociais. Tudo com a leveza e o humor com que atendeu Universa para esta entrevista, na manhã de quarta-feira (7). Leia os principais trechos.

UNIVERSA: Como foi sua trajetória de vida até começar a falar de negritude nas redes sociais?

AD Junior: Vim de uma família que sempre sofreu com os efeitos do racismo e era consciente da questão da raça, de que era um problema no Brasil, mesmo estando em um espectro religioso de igreja evangélica. Não foi uma família que se descobriu negra.

Eu vivia numa casa assim e, aos 10 anos, vi a Revista Raça pela primeira vez. Ali já entendi que minha cara tinha vez. Outras coisas entraram no jogo, como a sexualidade, mas eu sabia quem eu era. Em 2008, quando comecei na internet, vi que as pessoas estavam falando muitas mentiras sobre a negritude, fazendo piada com dia da Consciência Negra e falando mal de Zumbi dos Palmares, por exemplo.

No início, na verdade, eu queria falar de turismo e viagem. Mas vinham com "quem é esse neguinho que está falando disso aí". Então, pensei: vou falar primeiro de raça e depois de outros interesses. E estou falando disso há dez anos [risos].

No BBB, o apresentador Tiago Leifert se manifestou sobre Rodolffo ter comparado o cabelo de João ao de um homem das cavernas. É a primeira vez que isso acontece. O programa tem a obrigação de ser mais educativo nesses casos?

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AD Junior: "BBB está se atualizando na forma de comunicar as questões que não colocava em pauta"
Imagem: Divulgação/Vitor Vieira

Eu trabalho com Comunicação e acredito que o programa está se adaptando ao momento das discussões pós-George Floyd. E não estou passando pano, não. A cada semana, eles veem qual é o impacto aqui fora de uma coisa que, antes, "não fazia o mínimo sentido" falar e, hoje, faz.

Pessoas negras da militância já não estavam mais ligadas em discutir situações em que uma pessoa faz a piada com cabelo, pensávamos que já tínhamos falado o suficiente e as informações estavam aí, isso era assunto em 2015. Tivemos que revisitar essa conversa sobre o cabelo, porque tem gente que nem chegou nela...

E aí tem pessoas como o Tiago Leifert. Que não são santas da luta antirracista e nem devem ser louvados, porque estão fazendo o mínimo do mínimo... Parece que o mundo está olhando para o Brasil, pensando: "Vamos ver o que aqueles cínicos vão fazer agora, porque estão negando o racismo há 133 anos."

Você usa muito o termo "NegroCard". O que essa expressão diz sobre as relações raciais do Brasil?

Negrocard é usado direto por quem quer dizer que não é racista. É como se fosse um passaporte para se colocar no lugar de "estou do mesmo lado que você", mas esse passaporte é uma mentira. É quando a pessoa fala que não tem preconceito porque já namorou ou é casada com uma pessoa negra, por exemplo.

O Negrocard é isso, em alguns momentos, a pessoa vai usar "minha avó, meu bisavô é negro". E, no caso do pai do Rodolffo, ele pode ser lido como um pardo, negro de pele clara, mas que não usa a negritude dele para se posicionar.

Além disso, as pessoas também falam de uma pessoa negra como exemplo do "quem quer consegue". Falavam do [ex-ministro do STF] Joaquim Barbosa no tom de "ele passou o que passou para chegar lá". Só que ele não tinha que ter passado nada do que enfrentou. Eu sempre pergunto: "Você já sentou com essas pessoas para ouvir a história que elas têm para contar?".

Algumas pessoas brancas estão entrando em contato com termos como "privilégio", "branquitude" e com a luta antirracista agora. Como podem levar o apoio às vidas negras de forma efetiva?

A primeira coisa é fazer a autorreflexão, como a filosofia propõe: de onde eu vim, onde estou e para onde vou. Os brancos brasileiros, em sua branquitude, precisam começar a entender como contribuir para o discurso radicalizado do nosso país.

Afro-brasileiros não querem fazer nenhuma afronta aos brancos, mas mostrar a realidade dessa vivência em sociedade. O branco que é pobre tem oportunidades diferentes, porque a leitura em relação a ele na sociedade também será diferente em comparação aos negros. É preciso fazer essa análise mais crua.

O vídeo da modelo que disse que "tem até cachorro preto" para justificar uma fala vista como racista chocou muito, mas não a todos. Por que esse tipo de posicionamento reverbera tanto nas redes sociais?

Porque agora eles estão sendo pegos pela câmera. Está todo mundo em casa, sem poder viajar para o Parque do Rato [a Disney], aliás, o branco brasileiro adora ir para lá, enquanto, detalhe, enquanto não paga o décimo terceiro da empregada, então eles começam a falar nos Stories do Instagram, sem filtros.

Antes, a gente ouvia que estava exagerando. Agora, em 2021, está mais do que provado que não é exagero. A pessoa que está no Planalto [Jair Bolsonaro] comparou negros a bois, as pessoas comparam negros a cachorro mesmo. É como o brasileiro mediano pensa.

Se o Brasil tivesse feito uma discussão nos anos 60, com Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez... A gente não estaria tendo uma conversa tão tardia sobre isso. Pessoas negras dos Estados Unidos e da África do Sul nos questionam por que só estamos falando disso agora.

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Para comunicador, discussão sobre racismo estrutural e pautas raciais é tardia no Brasil
Imagem: Divulgação/Vitor Vieira

E por que acha que esse debate não emplacou antes?

Os brancos silenciavam as vozes de Lélia, Abdias, doutor Milton Santos. Não tinha internet, pessoas com smartphone contando a história do Brasil real. O René Silva, por exemplo, só ganhou voz potente quando começou uma conta no Twitter para falar da outra parte do que acontecia nas invasões ao morro do Alemão, que ele morava. Aí, ele começou a virar fonte. Naquela época, quem mandava nos meios de comunicação não queria que isso chegasse a outros lugares.

Sua descrição no perfil do Twitter é "Diversidade e Inclusão de Forma Propositiva But with Tretas". É possível falar de raça no Brasil sem treta?

Seria possível, se a gente tivesse uma sociedade minimamente educada sobre questão de raça. Tem 50% ou mais nesse país que se nega a discutir raça, classe e gênero, aí fica mais difícil a discussão sem treta. A maioria dos brasileiros gostaria de discutir raça como se morasse na Noruega, em um país que não teve escravidão...

O branco discute que veio da Itália, da Espanha, mas não quer discutir de onde veio o negro e o que isso acarreta nas nossas vidas. Além disso, ensinaram nas escolas que não se pode discutir raça, porque vivemos em uma democracia racial. A gente encontra uma grande parcela da população resistente a esses assuntos.

No seu canal do YouTube, você fez alguns vídeos sobre os pioneiros negros. Por que ficaram tanto tempo invisibilizados?

É um projeto de não se dar visibilidade. O brasileiro criou uma ideia de que tudo que é da Europa ou dos Estados Unidos é melhor. E dos brancos de lá, não dos negros. É como se não fossemos capazes de criar cultura e conhecimento. O samba é legal, mas não para o ano todo... A batucada e a dança não são balé, né?

Aliás, balé é incrível também, tem a Ingrid Silva, que é uma amiga. O fato é que os negros podem ser bailarinos, cantores de música clássica, mas tem outros ritmos, tudo pode acontecer. Quando os pensadores negros eram invisibilizados, era também não dar crédito às pessoas negras que queriam fazer coisas foram do aspecto racial. E, pensa: nosso primeiro desafio é mostrar ser capaz de fazer alguma coisa por conta da cor da nossa pele.

Há muito mais pessoas negras falando nas redes sociais hoje. Algumas acham que a pauta racial não avançou, outras, que tem o que se comemorar. Como você vê esse momento?

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Para AD Junior, que tem 195 mil seguidores no Instagram, há avanços no debate das pautas raciais no Brasil
Imagem: Divulgação/Vitor Vieira

Quando ouvimos as pessoas que falam que não avançamos, são ou as que estão cansadas ou as muitos jovens. Eu estou entre os dois, tenho 34 anos, e vejo quem é dez anos mais jovem achar que não houve evolução. Mas, quando eu tinha 24, ainda rolava post no Facebook homenageando a princesa Isabel em 13 de maio. Não se discutia nada.

Antes, o branco fingia que nem era com ele. Para mim, existe um avanço, não tanto quanto os jovens querem, nem quanto os mais velhos esperam, mas é indubitavelmente real. Ainda não sei para onde vamos. Acredito que para um lugar muito melhor, com mais aliados, com pessoas negras se empoderando mais. Eu acordo todo dia pensando que vou falar para meus sobrinhos, filhos e netos que eu estive lutando quando o Brasil começou a discutir inclusão.

Você é head de marketing do canal de TV Trace, que propõe a mostrar a cultura afrourbana brasileira. Como ele ajuda a mostrar ao mundo que há várias formas de ser negro?

Essa é uma discussão tardia no Brasil. No final da década de 70, surgem os primeiros canais com conteúdo negro nos Estados Unidos, para se valorizar a cultura negra, do hip hop, com suas próprias séries e programas. E é só lembrar que no início da década de 80, os clipes do Michael Jackson não apareciam em alguns canais...

A mídia tem o poder de criar outras perspectivas para que os jovens possam se inspirar. E o Trace é isso. Se dizem que a música da favela não deve ser valorizada, nos mostramos que eles têm talento e devem ser reconhecidos pelo que são. Não tem como ficar cantando só "Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim...".

A Trace chegou antes desse movimento antirracista, quando muita gente não acreditava no que a gente dizia. "Mas por que ter um canal negro?", perguntavam. Gente, temos três canais do boi [risos]. E tem vários canais étnicos: do Japão, da Itália, da Espanha...

A gente não quer só marcar território, mas gerar a possibilidade de o mercado assumir essa pauta, não só a de diversidade, mas de inclusão. Precisamos dizer para um menino e uma menina negra que eles têm valor.