"Sofri abuso do meu pai e do meu ex. Hoje dou palestras e ajudo mulheres"
"Nasci em Maringá, mas fui criada entre Lobato e Inajá, cidades no noroeste do Paraná. Minha mãe era bem religiosa e meu pai, alcoólatra. Quando os dois se casaram, logo nos primeiros meses ele já começou a agredi-la. Era muito difícil ela se divorciar, já que não tinha o apoio dos próprios pais, superconservadores. Na época, meu avô dizia que 'não aceitava uma filha separada'. Não era como agora em que as pessoas começaram a saber e falar sobre relacionamentos abusivos.
Meu pai chegava bêbado praticamente todos os dias em casa e também me batia. Tinha dias que eu ia para escola com manchas no corpo e muita dor. As agressões eram constantes e nenhum vizinho fazia nada, mesmo ouvindo a gente gritando.
Por incrível que pareça, somente o meu avô por parte de pai tentava ajudar minha mãe em algumas situações. Como ela não trabalhava, ficava muito difícil sair daquilo com duas filhas e ainda sem ter recursos financeiros.
Diante daquela situação, prometi para mim mesma que nunca ia depender de marido e teria minha profissão, além de dinheiro para me sustentar.
Os anos se passaram e minha mãe conseguiu sair daquela situação. Meu pai começou a ficar muito doente quando eu já estava morando no exterior e mesmo depois de tudo que ele fez contra a gente, ela ainda cuidou dele. Ele ficou muito debilitado e acabou morrendo de cirrose.
Até os meus 20 anos eu não falava disso porque me culpava muito e achava que eu tinha gerado tudo aquilo de alguma forma. Só depois de muito tempo que percebi que não era eu, e sim, ele que provocava aquelas situações e nos agredia. Eu não tinha mais questões para resolver e perdoei meu pai de coração depois que ele morreu
'Estava preparada para um tapa e não para abusos psicológicos'
Depois de muita perseverança, me formei em direito e fui fazer uma especialização em Barcelona, na Espanha. Foi lá que a segunda parte e uma das piores da minha vida começou. Eu já morava na cidade há algum tempo, conheci meu ex-marido em um café e ele realmente parecia ser uma pessoa encantadora. Naquele ano, eu estava muito vulnerável por causa da morte da minha avó.
Após alguns meses nos conhecendo, resolvemos ir morar juntos e foi aí que o pesadelo começou. Ele colocou sistemas que vigiavam as minhas redes sociais e dizia que era para o meu bem. Aquilo me deixava desconfortável, mas ele alegava que era para minha segurança. Colocou até detetive atrás de mim. O ciúme era muito doentio.
Pouco tempo depois, ele pediu para eu deixar meu emprego, já que era muito longe de onde morávamos. Assinei minha rescisão e fui trabalhar com ele, acreditando que seria melhor para mim.
No meio disso tudo, as brigas já estavam constantes, principalmente por causa do sentimento de posse que ele tinha. As agressões verbais eram frequentes e eu não conseguia acreditar e perceber que estava numa relação abusiva novamente. Eu me preparei para um tapa, mas não para o abuso psicológico. Ele ainda pedia para eu excluir familiares e amigos no Facebook e ia me tirando cada vez mais do convívio deles
Por ter saído do meu emprego, eu comecei a ficar refém dele economicamente e não sabia como sair daquilo. Ele era tão abusador que não gostava que eu falasse 'te amo', e sim 'te necessito'. Cansada de tudo aquilo, eu resolvi sentar e conversar com ele. Falei que era melhor nos separarmos e darmos um tempo para processar melhor aquilo.
Ele fingiu que aceitou o fim do relacionamento. Eu fui para Barcelona encontrar amigos e, quando estava retornando, a empregada me ligou dizendo que ele tinha dado ordens para eu não entrar na minha própria casa. Ele tinha trocado até a fechadura da porta.
Eu fiquei na rua, simplesmente com as roupas da mala e 800 euros em dinheiro. Até na minha conta bancária ele deu um jeito de mexer. Eu simplesmente não tinha para onde ir. Depois de um mês, consegui autorização da polícia espanhola para pegar parte das minhas coisas — e ele não me entregou nem metade.
Mesmo saindo de casa, ele ainda me ligava, se passava por outra pessoa e dizia que ia me matar e matar toda a minha família. Depois disso, resolvi sair por um tempo da Espanha e passar uma temporada em Dublin, na Irlanda, justamente para ele não ter mais notícias minhas.
Na época, eu consegui despistá-lo e ele parou com a perseguição. Era impossível as pessoas pensarem que um homem do jeito dele pudesse fazer aquilo. Ele fingia muito bem. E eles não mudam.
Recentemente, a atual mulher dele entrou em contato pedindo ajuda e disse que ele estava fazendo com ela o mesmo que fez comigo. Dei alguns conselhos a ela, mas preferi não ter mais nenhum tipo de contato para não gerar gatilhos ainda piores.
Ajuda para outras mulheres
Depois de algumas pessoas saberem da minha história, eu comecei a ser convidada para dar palestras em escolas públicas e incentivar jovens de 12 a 19 anos a terem uma vida melhor. Mostro que a educação é o melhor caminho para atingir objetivos, mesmo em situações de vulnerabilidade.
A gente sabe que nas escolas, principalmente nas públicas, existem muitas Silvinhas que já presenciaram situações abusivas dentro de casa. Depois dessas constantes palestras que participei, a Secretaria da Mulher do Paraná me convidou para começar a trabalhar na Casa da Mulher Brasileira.
O espaço funciona como delegacia, apoia e abriga mulheres em situação de risco até que elas achem um lugar seguro para ficar e estejam livres do agressor. Lá tem apoio de psicólogas, pedagogas e outros profissionais. Por causa da pandemia, os atendimentos presenciais diminuíram, mas sempre que possível tentamos levar informações e acolhimento a essas mulheres.
A minha ação no projeto é mostrar que há, sim, oportunidades e vida depois de relações abusivas. Como nós nos deparamos somente com notícias ruins, feminicídios e poucas informações de superação, é importante mostrar que há uma saída. Às vezes ficamos presas e reféns do presente, com medo do futuro e nunca saímos daquilo.
Espero que outras mulheres possam ser ouvidas, cuidadas e que ninguém possa duvidar delas."
* Silvinha Mantovani, 41, é advogada e autora do livro "40 antes dos 40" (Ed. Feliz)
Em caso de violência, denuncie!
Sempre que presenciar um episódio de agressão contra mulheres, ligue para 190 e denuncie. Vale lembrar que casos de violência doméstica são aqueles em que o agressor mora na mesma casa da vítima e, na maior parte, são cometidos por parceiros ou ex-companheiros, mas a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada em agressões cometidas por familiares.
Além do 190, também é possível realizar denúncias de violência pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Vítimas de violência doméstica podem fazer a denúncia em até seis meses a partir da data da agressão. Caso esteja se sentindo em risco, a vítima pode solicitar uma medida protetiva de urgência.
Clique aqui, acesse o Manual de Universa de combate ao feminicídio e saiba mais sobre o assunto.
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