Silvero Pereira: "Sou um homem construído a partir de histórias femininas"
Silvero Pereira já foi drag queen, cangaceiro, traficante, magnata e agora alterna entre Viih Tube, Pocah e Gil do Vigor — sim, do "Big Brother Brasil". Desde janeiro, o ator de "A Força do Querer" e "Bacurau" interpreta participantes do reality em esquetes para as redes sociais. Para ele, além de fazer rir, o BBB faz refletir.
Em entrevista a Universa, ele declara sua torcida para Juliette e diz que, como a paraibana, já sofreu xenofobia por conta do sotaque, que vem de Mombaça (CE). Silvero também fala sobre recusar papéis ligados à diversidade e conta por que quase ficou de fora de "Bacurau", um dos filmes brasileiros mais premiados nos últimos anos. Na exibição do longa de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles em Cannes, Silvero desfilou no tapete vermelho de vestido, cabelos longos e maquiage. "Sou um homem construído a partir de histórias femininas. Essa é uma forma de mostrar o que escondi a vida toda por medo do preconceito."
UNIVERSA: Você posta nas suas redes sociais muito conteúdo de humor sobre o BBB 21. Além de entreter, acha que o programa dialoga de alguma forma com a realidade?
Silvero Pereira: Eu sou muito fã do BBB desde a primeira edição. Há muito tempo, pensei em me inscrever, gravei vídeo e tudo, mas não cheguei a mandar. Este ano comecei a me divertir não só assistindo, mas produzindo conteúdo sobre o programa. Isso me diverte e diverte as pessoas também.
Mas acho que o BBB é um espaço de muita visibilidade para pautas sérias — questões sobre transfobia, racismo, machismo, xenofobia. O que é dito ali dentro é — e deve ser mesmo — levado a sério, porque dá forma a discursos preconceituosos fora da casa. Quando alguém abre a boca para criticar determinado tipo de roupa, determinado comportamento, valida outras pessoas preconceituosas aqui fora.
Falta um mês para o fim do programa. Para quem vai a sua torcida?
Com certeza para a Juliette. Estou vidrado nela, principalmente pela coerência. Tenho uma relação muito forte com o Gil, principalmente porque ele também é nordestino e LGBTQIA+, mas acho que, dentro do jogo, a Juliette foi mais coerente até agora. O Gil se perdeu um pouco no meio do caminho. Mas eu fui Sarah também, cheguei a postar coisas como "minha líder preferida", então, dependendo do que acontecer, posso mudar de ideia. Estou torcendo pela Juliette, mas um mês ainda é muito tempo, muita coisa pode mudar.
Por falar em Juliette, ela foi vítima de xenofobia no começo do programa. Já sofreu preconceito por conta do sotaque?
Sofri bastante e, inclusive, mudei minha forma de falar por um tempo, quando fui morar em Porto Alegre (RS), no começo da carreira. Lá, eu sofria xenofobia diariamente. As pessoas reproduziam minha forma de falar como motivo de chacota, e eu ficava muito assustado, porque era a primeira vez que estava morando fora do Ceará, nunca tinha visto aquilo.
Essa xenofobia também impactou de alguma maneira a sua vida profissional?
Em São Paulo, há uma enorme quantidade de nordestinos fazendo todo tipo de trabalho: taxistas, médicos, pedreiros, o que for.
Mas, na televisão, para fazer uma novela, tem que ter sotaque paulista ou carioca, não pode ser um personagem nordestino que mora em São Paulo, por exemplo. A gente é chamado para fazer a empregada, o motorista, o papel secundário, mas nunca um papel de destaque. Para mim, isso é muito xenofóbico.
Hoje, eu faço questão de continuar morando em Fortaleza (CE), mesmo que 90% do meu trabalho aconteça no eixo Rio-São Paulo. A geração antes da minha dizia que, para ser artista, tinha que sair do Nordeste para o Sudeste, mas a minha geração diz o contrário. É um movimento muito recente e ainda existe uma pressão para que eu saia do Ceará. Ainda escuto coisas como "poxa, se você morasse no Rio ou em São Paulo, teria mais trabalho".
A gente também não vê atores gays fazendo papéis de destaque, como um galã, por exemplo. Acha que a sexualidade ainda te limita profissionalmente?
Acho que limita sim, mas o mercado precisa tomar um choque. Não adianta ficar esperando que o mercado de trabalho mude naturalmente, isso não vai acontecer. É preciso que haja um movimento por parte dos artistas. O Jesuíta [Barbosa, ator pernambucano], por exemplo, já falou abertamente sobre a sexualidade dele e continua fazendo papéis principais.
Meus últimos trabalhos também não têm passado pelo lugar da sexualidade, da diversidade. Pelo contrário: tenho sido convidado para projetos fora dessa imagem que as pessoas tinham desde "A Força do Querer" [primeiras novela de Silvero, de 2017, em que ele interpreta uma drag queen] — os filmes "Bem-vindo a Quixeramobim", em que eu faço um magnata, e "Me Tira da Mira", onde eu sou um bandido equatoriano. Mas isso partiu de mim.
Eu tenho batido o pé e dito "esses personagens eu não quero". Quando eu digo isso e aceito propostas que fogem desse estereótipo, forço o mercado a me enxergar de outra maneira.
Recentemente, você revelou que Lunga, seu personagem em "Bacurau", foi escrito para ser uma mulher trans, mas você sugeriu que fosse diferente. Por quê?
A partir do momento que eu começo a fazer um trabalho ligado à diversidade e à comunidade LGBTQIA+, sou levado para dentro dos movimentos sociais e vou me educando, aprendendo com meus próprios erros. Tem coisas que fiz como ator e não faria novamente. Quando fui convidado para fazer o Lunga, vi no roteiro original que se tratava de uma mulher trans e falei: "Olha, não tenho condições de fazer a personagem. Se vocês querem que seja uma mulher trans, precisam contratar uma atriz trans. Se vocês querem o Silvero, precisam reformular a identidade do personagem." E assim Lunga virou um cangaceiro queer.
Por conta do meu papel como Elis Miranda na novela, recebi muitas ofertas de personagens transexuais e travestis, mas neguei e, todas as vezes, expliquei o motivo: "Vocês precisam contratar atrizes trans"
"A Força do Querer" recebeu críticas justamente por isso, por ter uma atriz cisgênero no papel de um homem trans.
Exatamente. Eu e a Carol Duarte [atriz que interpreta o personagem trans] aceitamos fazer a novela há quatro anos, era nosso primeiro trabalho na TV. Hoje, tanto eu quanto a Carol temos outra consciência, e provavelmente não faríamos papéis com a mesma proposta. A Elis Miranda não era uma mulher trans, era uma drag queen, tanto que a Glória Perez fazia uma distinção entre ela e o Ivan, que era um homem trans, ou seja, ela mostrava ali a diferença entre a identidade de gênero de um e a identidade artística de outro.
Mas hoje não faria uma Elis Miranda novamente. Por mais que ficasse claro ali que era uma identidade artística, não tinha espaço para discutir a identidade de gênero dela. Hoje, se eu tiver que fazer um personagem na mesma linha, gostaria de deixar isso mais claro, discutir mais profundamente.
Recentemente, você revelou ter sofrido um estupro na infância. Por que decidiu falar agora?
Eu só tive consciência do que aconteceu anos depois. Na época, eu tinha 7 anos e não sabia o que era uma relação sexual. Só entendi que tinha sofrido um estupro quando aprendi o que era sexo e percebi que já tinham feito aquilo comigo — e de uma forma muito violenta. Quando eu decidi falar sobre isso, é porque estava resolvido na minha cabeça. Antes de falar publicamente, inclusive, eu entrei nesse assunto no espetáculo "Bixa, Viado, Frango", que escrevi no ano passado para uma peça on-line. Quando eu trago esse assunto para dentro do meu trabalho, é porqueresolvi no âmbito pessoal.
Resolvi falar sobre estupro, também, para ser uma referência para quem já viveu essa violência, para que saibam que não estão sozinhos. Que isso acontece e deve ser denunciado. Eu não tive essas referências, uma pessoa que a gente visse na TV falando sobre isso. E a sensação de solidão era muito ruim.
Em 2019, quando esteve em Cannes representando"Bacurau", você cruzou o tapete vermelho como uma mulher — de vestido, cabelos longos e maquiagem. Já fez isso em outros eventos também. Por quê? Que recado quer passar?
Porque essa é a história do Silvero. Quem me conhece antes da TV, sempre me viu assim, de Gisele Almodóvar, que é a minha persona, minha identidade drag. A Gisele existe na minha vida há 17 anos, desde o meu primeiro trabalho no teatro.
Quando eu apareço de Gisele agora, com a visibilidade que eu tenho, estou dizendo que sou um homem construído a partir de histórias femininas — da minha mãe, das minhas irmãs, das minhas avós. A minha vida é regida por mulheres e, para mim, é importante dizer que o homem que eu sou é a soma dessas mulheres.
Ganhar o prêmio de Homem do Ano da revista "GQ", em 2019, sendo um homem gay e que durante a infância e a adolescência era chamado de mulherzinha, é muito esquisito. Receber esse prêmio vestido de Gisele foi uma forma de mostrar o que escondi a vida toda por medo do preconceito.
E, para você, o que é ser homem no Brasil em 2021?
O homem de 2021 ainda é um homem que não reconhece a força feminina na nossa sociedade, ele tá sempre querendo se colocar acima, se impor acima, e não de igual, e isso ainda precisa ser solucionado.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.