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"Deixei trabalho de professora quando aulas voltaram por medo da covid"

A professora Tamires Romano: "Chorei ao pensar que deixaria minhas crianças na mão. Mas foi a decisão correta" - Reprodução
A professora Tamires Romano: "Chorei ao pensar que deixaria minhas crianças na mão. Mas foi a decisão correta" Imagem: Reprodução

Tamires Romano Barbosa em depoimento a Camila Brandalise

De Universa

14/04/2021 04h00

"Quando decidiram retomar as aulas presenciais na escola em que eu dava aula, em fevereiro deste ano, eu só conseguia sentir medo. Tenho bronquite, já ouvi de médico que meu pulmão tem 'vocação para inflamar'. Moro com meu marido, que é obeso, ou seja, ambos somos do grupo de risco da covid-19. Além disso, em novembro, perdi minha avó de 91 anos por complicações da doença, após ela lutar bravamente contra a infecção.

Tenho 33 anos e desde 2019 dava aulas para crianças de 2 a 3 anos em uma escola de Niterói (RJ). Após o início da quarentena, em março de 2020, tinha encontros online com os alunos uma vez por semana, pois não havia obrigação de manter o ensino remoto para essa faixa etária. Fazia lives com temas como festa dos bichos e primavera e montava material com atividades, que os pais buscavam na escola, para os filhos fazerem em casa.

Depois de um abaixo-assinado de pais pedindo retorno das aulas, um decreto do prefeito, em janeiro, autorizou a retomada do ensino presencial da rede privada. Cheguei a pensar em pedir demissão já nessa época mas, conversando com meu marido, achamos que a vida poderia continuar com os cuidados necessários.

Depois do primeiro dia de aula, saí da escola e liguei para um amigo chorando. Não existe isolamento social com criança.

Ficava o tempo todo dizendo: 'Fulano, a máscara tem que ficar em cima do nariz'. Um dia, fui arrumar a calça de um aluno que tinha feito xixi, ele esbarrou em mim sem querer e tirou minha máscara. Já fiquei em pânico. Pensava comigo: 'Não tem a menor chance de dar certo, é questão de tempo pra todo mundo se infectar'.

"Se me contaminasse e perdesse meu marido, ia definhar como pessoa"

No dia 26 de março, uma sexta-feira, o estado entrou em feriado prolongado para conter a disseminação da doença. No dia seguinte, soube que a avó de um amigo tinha morrido de covid. Desabei. Queria deitar na cama e ficar lá chorando. Tinha perdido minha avó em novembro, também por causa da doença. Então a notícia me atingiu feito um caminhão.

Meu marido notou minha tristeza e perguntou o que eu tinha. Contei do meu amigo e começamos a conversar. Ele me disse que no dia anterior tinha acordado de madrugada com falta de ar e com o olfato fraco e não conseguiu mais dormir. Já estava com dor de cabeça e diarreia durante a semana e ficou preocupado.

Ficou pensando que, caso estivesse com covid, eu me sentiria culpada por ter transmitido a doença, já que era a única que saía de casa. No desespero, me acordou, mas só abriu o jogo no dia seguinte.

Fizemos o PCR e aguardamos o resultado. Se desse negativo, eu pediria demissão. A chance de eu pegar era muito alta e não queríamos passar por toda aquela angústia. Com resultado negativo, eu estava certa de que não voltaria a dar aulas por enquanto.

Graças a Deus, conseguimos nos manter com o salário do meu marido, que é desenvolvedor e trabalha em home office. A gente aperta as coisas e consegue viver.

O problema financeiro vai passar, mas nossa vida é mais valiosa do que isso. Somos muito privilegiados e abençoados, pois sei que tem gente que precisa sair de casa porque, senão, vai passar fome.

Não foi uma decisão fácil. Eu tinha um trabalho com carteira assinada, pedi demissão no meio de uma pandemia. Além disso, chorei muito pensando que estava deixando minhas crianças na mão em um momento tão difícil. No dia que fui pegar minhas coisas, elas me viram e começaram a gritar: 'tia Tamires'. Foi dolorido. Estava amadurecendo profissionalmente, encontrava muito sentido no que fazia. Mas sei que fiz a escolha certa.

Se eu passo covid para o meu marido e ele morre, acho que eu ia definhar como pessoa. Teria que conviver com as consequências disso para o resto da vida e não sei se conseguiria lidar com isso. Aí eu vejo as pessoas dizendo que precisam sair de casa usando essa carta de saúde mental. Como não entendem que estão colocando a vida delas e a vida das outras pessoas do seu entorno em risco?

"Covid me custou minha avó e meu emprego"

O medo de ter a doença ou de que alguma pessoa próxima tivesse era ainda pior porque havia perdido minha avó em novembro. Era uma mulher de 91 anos conhecida em toda a cidade. Alegre, disposta, sempre rindo.

tamires máscara - Reprodução - Reprodução
Tamires bordou uma máscara após perder a avó
Imagem: Reprodução

Minha avó foi internada com covid em novembro de 2020. Conseguiu vencer a doença e uma pneumonia depois de quase um mês. Mas contraiu uma bactéria e teve que ficar mais uns dias no hospital, porém não mais na ala da covid.

Nessa troca de ala, podia receber uma visita por dia. Fui visitá-la em uma quinta-feira. Ela estava sedada, enfaixada, esquisita. Pensei comigo que, se fosse para ficar aqui e ficar mal, não precisava ficar só porque a gente queria. Se tivesse que ir embora, poderia ir. No dia seguinte, recebemos a notícia de que ela havia falecido. Pelo menos eu pude me despedir.

Não consegui dormir nos dias seguintes e sentia muita raiva. Decidi bordar uma máscara em que aparece escrito: 'Covid-19 é uma doença muito cara. Me custou uma vó'. Transformei a dor em algum tipo de arte. Fiz uma foto e postei nas redes sociais. Muita gente que nem me conhecia viu e comentou.

Era meu objetivo. Se de alguma maneira conseguir servir de alerta para as pessoas se cuidarem, ficarem em casa e entenderem que precisamos proteger os outros, já fico feliz. Não entra na minha cabeça como pode ter gente saindo para rua, sem máscara, fingindo que está tudo bem, com o país batendo recorde de mortes.

Não é só uma média de 3.000 mortes por dia. São três mil irmãos, sobrinhos, avós. Eu sei que a minha avó tinha 91 anos, viveu bastante. Mas sua partida não precisava ter sido desse jeito.