Bolsonaro tentou vetar: como gravar agressão pode ajudar vítimas de abusos
Vítima de violência doméstica praticada pelo então marido, Cristiane Machado, que atuou em novelas da Globo como "Amor à Vida" e "Malhação", decidiu colocar uma câmera escondida em casa e filmou as agressões para levar as imagens à polícia. Nas cenas (veja o vídeo ao final desta reportagem), exibidas pelo "Fantástico" em 2018, pode-se ver o ex-diplomata Sérgio Schiller Thompson-Flores tentando estrangular a atriz entre outras agressões. Ele foi condenado em setembro de 2019 a três anos de prisão em regime semiaberto, mesmo com sua defesa alegando que os vídeos foram adulterados.
Naquele mesmo ano, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionava o pacote anticrime, principal bandeira do ex-juiz federal e ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Ao aprová-lo, no entanto, o presidente vetou 24 dispositivos, entre eles o que diz: "a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada como prova de infração criminal quando demonstrada a integridade da gravação."
Para o presidente, essa medida limitaria o uso da prova apenas pela defesa. "Contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime", disse na justificativa do veto.
Na última segunda (19), no entanto, o Senado derrubou esse veto e voltou a autorizar, com isso, o uso de gravação ambiental pela defesa sem o conhecimento da polícia ou do Ministério Público. Os textos vão à promulgação presidencial.
Gravei minhas agressões pelo medo de morrer e porque meus pais são deficientes e têm limitações que impediriam chegar a uma delegacia sozinhos. Então quando o agressor, com uma faca no meu pescoço, disse que mataria minha família, meus pais, decidi instalar as câmeras pela casa, conta Cristiane a Universa
"Não achava que sairia viva, mas queria que eles tivessem a chance de se proteger e buscar a justiça e hoje vejo que ela está sendo feita. Atualmente, esse áudio está na polícia e investigações complementares estão em curso." Ela tem medida protetiva contra o ex e o monitora pelo botão do pânico.
"Nenhuma prova vale sozinha; tem mulher que não tem nem celular"
A desembargadora Ivana David, da 4ª Câmara Criminal do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) esclarece que o STF (Supremo Tribunal Federal) já entende que a vítima pode, sim, se gravar, e julgou vários casos nesse sentido. "Na teoria geral, é possível, sim, a pessoa se autogravar, e ainda que a imagem não seja utilizável, é um ponto onde o juiz pode se debruçar e validar", ela explica.
Mas essa não seria a única prova - -e a mais importante — que a vítima poderia apresentar à Justiça, Ivana ensina. Ela lembra que, primeiro, a palavra da vítima ainda é uma prova de ouro dentro do processo. E esta pode ainda levar um laudo pericial mostrando a lesão da violência que sofreu, se houver:
O que se discute na Justiça é o conjunto, porque nenhuma prova vale sozinha. Sou juíza há 30 anos e 99% dos meus processos vêm sem gravação de violência e contam com prova testemunhal. Isso porque a maioria é humilde, mal tem celular, quando o agressor não quebra o aparelho
"Legislação está perdendo para a tecnologia"
Para quem alega que as imagens gravadas tenham sido adulteradas, caso do ex-marido de Cristiane, Ivana lembra que a tecnologia hoje permite desde quebra de senhas de telefone até confirmar ou não a veracidade de uma imagem. "Você consegue provar dia, hora e local em que a foto foi feita."
O que ela vê, nessa discussão, é o que chama de uma "guerra assimétrica" entre legislação e o timing da tecnologia: "O timing entre o crime e a busca da prova é uma guerra onde o Estado sempre perde. A legislação está discutindo quem pode juntar o quê, e a vítima está apanhando."
"Quanto mais prova, melhor"
Já para a delegada Raquel Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de São Paulo, quanto mais provas, melhor para se chegar à confirmação do crime e ao autor.
"O inquérito policial é o instrumento, no direito processual penal, que legalmente materializa a investigação criminal, presidida pelo delegado de polícia. Quanto mais provas tivermos, mais próximo da verdade chegaremos."
Cristiane tem hoje, inclusive, câmeras instalada na casa de seus pais:
"A prova ambiental é um diferencial que soma profundamente para a justiça ser feita, e também é uma ferramenta importante para os crimes de quebra de medida protetiva. Tanto que hoje uso o botão do pânico e sou avisada se meu agressor está ultrapassando o limite permitido da minha medida protetiva".
"Vivo uma pós-denúncia difícil. Não posso dizer que minha vida não está em risco nem a dos meus pais, mas posso dizer que me orgulho de estar viva e poder ajudar outras mulheres a saírem da violência. E quero encorajar as mulheres a denunciar, porque senão podem morrer, e em silêncio."
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