"Tem cliente que vai embora ao ver que só tenho uma mão", diz cabeleireira
"Segundo a minha mãe, eu nunca tive dificuldade para fazer coisas, ela sempre me deixou muito livre para eu fazer as tarefas de casa do meu jeitinho, como varrer a casa, passar pano etc. Nunca me privou ou me protegeu demais, sempre me colocou como se eu fosse igual ao meu irmão e aos outros.
Não me sinto diferente de ninguém. Nasci com uma ausência congênita do membro superior direito: mão e dedos. Como já nasci assim, as adaptações vieram naturalmente, mas isso não impediu que eu sofresse na infância e adolescência, algo já superado graças a Deus.
Eu venho de uma família onde o meu avô era o barbeiro da família, ele cortava o cabelo dos 11 filhos, e meu tio também
se tornou barbeiro. Desde pequena eu tive essa vontade de cortar o cabelo, cortava o das bonecas. Na
adolescência, eu cortava o cabelo da minha mãe e fiz alisamento no cabelo dela. Aí uma vontade de fazer isso veio vindo. Eu vi que era uma coisa que eu gostava, que me dava satisfação em fazer, ver o sorriso da pessoa que estava satisfeita, me dava uma gratificação grande, me sentia bem fazendo com que as pessoas se sentissem bem.
Até hoje quando eu faço um cabelo, eu não penso no valor que eu vou ganhar, eu penso no prazer que vou dar àquela pessoa ao ajudá-la a reconquistar a autoestima
Já era cabeleireira, mas decidi também fazer o curso de nove meses de barbearia, em 2018, porque eu havia perdido bastantes clientes homens que estavam indo para essas novas tendências de barbearias. Havia uma demanda grande, e eu senti a necessidade de me atualizar. Tive as minhas dificuldades, que me adaptar às técnicas, mas tudo que me proponho a fazer na vida eu sempre dou um jeito, seja amarrando algum acessório na mão.
Se me propus a fazer algo, eu vou lá e faço. É tão natural me adaptar a determinadas funções que eu não percebo as dificuldades, é normal para mim
A forma como eu trabalho é bem simples, amarro no braço em que não tenho a mão o pente e o secador, e a tesoura fica na mão esquerda. A maior dificuldade são as progressivas, porque exige força e firmeza e aí acaba machucando bastante o braço que tenho a mão.
No início, sofri muito preconceito, tanto de homens como de mulheres. Uma vez um cliente entrou no salão e quando notou que eu iria cortar o cabelo dele, disse: 'Mas é você que vai cortar? Essa eu quero ver'. Ele gostou e se tornou meu cliente fixo. Foi um preconceito, mas foi conquistado, foi provado para ele que eu conseguiria cortar. Mas já teve gente que foi embora.
Em outra ocasião, uma senhora queria fazer mechas no cabelo e quando soube que seria comigo, ela meio que se negou, querendo dizer 'Ah você vai conseguir fazer isso com esse toquinho de braço'. Eu engoli seco e respondi que conseguiria, sim, e ela disse 'Então vamos testar'
Fiz as mechas, ela saiu satisfeita, mas a todo momento duvidou do meu potencial, questionando tudo que eu estava fazendo.
O preconceito existe sim e sempre passei por isso na vida pessoal e na profissional também. Se magoa? Com certeza, mas é algo que tem que ser superado. Atualmente eu não passo mais por isso, até porque conquistei uma grande clientela que me indica para outros clientes. Então as pessoas que vêm ao meu salão pela primeira vez já sabem que serão atendidas por uma deficiente física. Geralmente eles se surpreendem com o resultado, gostam bastante.
As pessoas precisam entender que um deficiente, quando se coloca no mercado de trabalho para uma determinada vaga, ele se preparou muito antes para isso. Ele não vai sem saber o que ele pode ou não fazer. Eu trabalhei durante anos em dois hospitais como faturista e em vários setores, me preparei bastante para aquela vaga, eu sabia que teria digitação, então eu treinei e digitava bastante em casa.
O deficiente é muito competitivo, perfeccionista e detalhista na maioria das vezes, ele não vai sair para perder, vamos dizer assim (risos), então ele vai ser o melhor profissional que essa empresa poderá ter. Lamento pelo empregador que deixa de contratar um deficiente por achar que ele tem limitações, quem está perdendo é ele, e não o profissional
A minha mãe é a minha inspiração, foi ela que me tornou essa pessoa que sou hoje, eu sinto muitas saudades dela. Ela sempre foi uma guerreira exemplar, se separou quando eu tinha uns cinco anos, sempre fomos muito unidas, e ela sempre me deu muita força em tudo que eu decidi fazer na minha vida. O salão que eu tenho há dez anos é uma homenagem a ela, pois o nome Amaro vem dela.
Eu também segui 'carreira solo', tenho dois filhos, um de 21 anos que já é casado e pai, e outro, de 13, que mora comigo, além do meu neto de 1 ano. Embora quisesse que o mais velho seguisse o meu legado, vamos dizer assim, ele preferiu outra carreira, mas há pouco tempo demonstrou interesse em barbearia.
Nossos sonhos mudam conforme o tempo vai passando, antes quando eu quis ser cabeleireira e tal, meu sonho era ser conhecida por todos, que todos me conhecessem pelo meu trabalho e pelo meu esforço.
Aprendi que o limite está na sua cabeça, quem coloca o limite do que você pode ou não fazer é você mesmo. Porque se você quiser fazer algo, você vai correr atrás e vai dar um jeito
De alguma forma você vai conseguir, mas para isso você tem que querer. Hoje, meu sonho é poder estar ensinando tudo o que eu aprendi, disseminando o meu conhecimento para as pessoas, esse é o meu sonho.
Quem sabe um dia terei uma escola técnica com o meu nome, não é? Sonhar não tem limite e eu também sou uma pessoa que não tem limites."
*Simone Amaro, 44, é cabeleireira e barbeira em Esteio (RS)
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