Alessandra Devulsky: "Colorismo preserva privilégios de pessoas brancas"
A advogada e pesquisadora Alessandra Devulsky soube que era uma menina negra quando a mãe tentou matriculá-la na única escola privada da cidade de Diamantino, a 200 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso, nos anos 80. Aos 6 anos, ela ouviu que já deveria ter sido alfabetizada, uma motivação que não fazia muito sentido.
Os pais resolveram contratar uma professora particular para a tarefa. Alessandra, então, voltou no ano seguinte ao colégio sabendo ler e escrever. E percebeu que, ali, ela seria única. Todos os colegas de classe eram loiros.
Para discutir como a hierarquização dos tons de pele está relacionada ao racismo e ao privilégio branco, Alessandra lançou "Colorismo" (editora Jandaíra), pela Coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro. O termo colorismo foi cunhado pela escritora Alice Walker, nos Estados Unidos, e estabelece critérios relacionados ao tom da pele dos indivíduos para dizer quem é branco e quem não é.
No livro, a autora explica que é necessário entendê-lo como estrutural e braço do racismo. Além disso, toca em questões raciais profundas, principalmente pelo fato de o Brasil ter 56,2% da população que se declara negra (sendo 46,8% de pardos e 9,4% de pretos): o colorismo é uma ideia para dividir as comunidades negras? Quem está dentro do balaio "pardos", levando em conta a miscigenação entre europeus, negros e indígenas?
Na entrevista para Universa, Alessandra adianta algumas análises. "Para mim, pardo é envelope. O único lugar em que sou chamada assim é na minha certidão de nascimento. Mas tenho identidade negra. Não me lembro de ninguém na infância me chamar 'ô, sua parda!'. Mas esse também é o não-lugar de outros miscigenados."
A advogada participa do evento Mulheres Pós 2020, que discutirá como a pandemia de covid-19 afeta o presente e poderá impactar o futuro na vida das mulheres. O evento, que será transmitido gratuitamente por Universa nos dias 27, 28 e 29 de abril, foi idealizado pelas jornalistas Ana Paula Padrão e Lia Rizzo e pelo publicitário Cristiano Dinize. Padrão conduzirá a programação que contará com mais de 20 debatedoras.
Confira os principais trechos da entrevista.
UNIVERSA: Qual é o impacto do colorismo na sociedade brasileira?
ALESSANDRA DEVULSKY: O colorismo é uma maneira pela qual o racismo consegue organizar sociedades racializadas que têm como ser branco como norma. Assim, ser negro, seja de pele clara ou escura, significa não estar dentro do padrão social.
No período da escravidão no Brasil, foi preciso um motivo forte e convincente de que determinadas pessoas nascem para escravizar outras, que, por sua vez, "nasceram destinadas a estarem em lugar de subalternidade". Hoje, não há escravidão institucionalizada, mas há hierarquias 'racializantes' dentro de uma política neoliberal, que se baseia na superexploração do trabalhador.
O colorismo é uma tecnologia quase perfeita para um país como o Brasil, com 46% de pessoas negras de pele clara, com algum traço de miscigenação, que se inicia pelo estupro sistemático de mulheres indígenas e negras. Como se disciplina um país que tem maioria negra? Sem dar igualdade a elas.
E, de acordo com um gradiente racial, o colorismo continua preservando um campo de privilégios para pessoas brancas. Não é algo que a comunidade negra interioriza, como um complexo de identidade. É uma ideologia criada pela supremacia branca para continuar com seus privilégios.
O lugar do pardo parece ser um enigma na sociedade brasileira. Estamos avançando no entendimento dessa identidade?
Há avanço, mas temos que ter cuidado para tentar procurar respostas simples para problemas complexos. Não há, neste momento, e nunca haverá, uma fórmula de Bhaskara para definir a raça de alguém, porque a experiência racial é politicamente construída. Ela responde a demandas econômicas. E muda no tempo.
Racializar as pessoas faz parte da história da humanidade. E é por isso que em um mundo tão global, no qual os casais inter-raciais são mais numerosos, a gente precisa entender qual é o lugar dessas pessoas que têm traços de culturas distintas.
Isso porque o não-lugar racial pode ser doloroso. Só que a discriminação passa ao largo disso, já que não importa se você, que é lido como pessoa negra, tem algum avô alemão, se tem avó italiana, sobretudo na sociedade brasileira.
É importante saber que, no Brasil, jamais iria colar uma ideia de segregação institucional, como na América do Norte. Então, o que se tentou foi um projeto para embranquecer a população.
Daí vem o: 'Você é negro, mas tem melhoramento genético, porque tem traços finos, uma avó branca, seu cabelo é diferente, sua pele é mais clara'. Parecem coisas sem importância, mas isso estabelece a cultura branca como o 'onde eu devo chegar'.
Por que escrever um livro sobre colorismo agora, após um novo levante antirracista?
Falar de colorismo é apontar o mal-estar de quando um suposto elogio é dado a uma mulher negra só valorizando algum fator de miscigenação, por exemplo. E é importante dizer que ser negro é ser diverso, inclusive na África.
O Brasil é um país de maioria negra. Por isso, temos um peso grande no mundo quando se fala de racismo e, ainda assim, o poder está reservado a uma população pequena, de brancos. É um barril de pólvora.
Como faz para ele não explodir? Abre-se algumas oportunidades, em determinados momentos, com fila de prioridade, entre as pessoas de pele mais clara e de pele escura. Só que o que a gente precisa combater é a existência da fila. Senão, estamos interiorizando o crivo da ideia de supremacia branca.
Por tudo isso, o colorismo não é uma conversa agradável. Para ninguém. Mas é necessária, para resolver nossos problemas, como o racismo. Não se combate algo historicamente construído por mero desejo de mudar, todo mundo dar a mão e fazer uma ciranda cantando 'Black is Beautiful'. É preciso política pública que reconheça que há distinção enorme entre negros e brancos.
E o que precisa ser rechaçado é o fato de que as pessoas são vistas de acordo com o grau de associação que têm ao elemento europeu e ao elemento africano.
Como o colorismo fez parte da construção da sua identidade racial?
A minha história deve ilustrar a vida de muitas pessoas. A cidade em que nasci, Diamantino, é um exemplo das políticas de branqueamento do governo durante a ditadura militar, infelizmente. Era vista como um vazio demográfico naquela época, como se os negros, quilombolas, população ribeirinha mestiça, indígenas não existissem. Os colonos europeus do Sul foram até subsidiados para irem para lá, comprando terras.
Então, nasci sendo um elemento indesejável dentro da minha própria cidade, sendo meu pai lido como negro e minha mãe, branca. E tem o episódio triste na minha vida em que fui rejeitada na única escola que era privada na cidade. A diretora disse que não poderia aceitar minha matrícula porque eu não era alfabetizada. Chegou a fazer um teste, me mostrando as letras para ler. Não passei. E minha mãe me conta que entendeu tudo quando viu a sala, um ano depois: todas as crianças brancas, com fenótipos europeus. E ninguém sabia ler. Naquele momento, entendi o que é racialização.
Como se dá essa racialização?
Ela não é construída por um ato volitivo, você não olha para o espelho e diz: "Hoje eu sou negra". O sujeito não tem escolha sobre o pertencimento racial, a sociedade grita para ele e coloca uma etiqueta. Até acredito que uma pessoa possa se descobrir negra mais tarde. Mas não é bem uma descoberta. A gente recalca as identidades, porque é dolorido, e tentamos passar por outras que não nos façam sofrer. E isso é absolutamente humano. Quem tem algum tipo de miscigenação às vezes vai evitar essa identificação pela carga negativa e os estereótipos que são colocados aos negros.
De que forma o colorismo atinge as mulheres e os homens?
Pelo conceito de interseccionalidade, mulheres negras vivem sobreposição de opressões. Na relacionada à classe, ela está nos trabalhos precarizados porque é negra e é negra, por isso está em trabalhos precarizados. A outra é o fato de ser mulher. São as mulheres negras as primeiras a serem usadas para trabalho doméstico.
Ela se torna a que deve servir, que não tem humanidade, que parece não ter história, e que deve conservar o ambiente familiar em paz. Por sua vez, a mulher negra de pele clara, durante a sociedade colonial, não é aquela que vai executar trabalhos duros no campo, de maneira geral. Quem fala bem disso é a Lélia Gonzalez.
A que tinha traços europeizados era levada para os trabalhos considerados mais amenos na cozinha, nos afazeres domésticos da casa-grande. Mas, no início do processo de escravização, não necessariamente eram as miscigenadas, eram as que tinham alguma composição étnica assim. As mais 'atraentes', que acabaram sendo estupradas. Isso significa dizer, aliás, falar para 46% da população brasileira que o início de suas linhagens é violento.
Para os homens, o sistema carcerário no Brasil é o infeliz exemplo de que ser negro de pele clara não significa ter nenhum privilégio. Você continua sendo um alvo da polícia. Essa é o exemplo de como pessoas de pele clara sofrem preconceito, assim como as de pele escura. Acontece que o racismo tem naturezas diversas, de acordo com os espaços.
Há um discurso de que "somos todos iguais" e parte da população fala coisas como "você nem é tão negro", "eu não sou tão branco" para justificá-lo. A história do Brasil nos permite dizer isso?
De forma concreta, não dá para dizer que somos iguais. Estatisticamente, homens negros morrem mais de covid-19 do que brancos. Como isso acontece? Como pode um vírus ser racista? Ele não é. São as circunstâncias ambientais que fazem com que negros estejam mais suscetíveis a ele. Porque exercem trabalhos com menos condições dignas, usam o transporte público, não têm condição de fazer teletrabalho.
E isso acontece também com mulheres negras. Dizer que somos todos iguais... Sim, a gente pode querer, pessoalmente, que sejamos. Mas, para que isso aconteça, é necessário constatar que a desigualdade material existe, ainda que a legislação nos diga que devemos ser tratados de forma igualitária.
O que a discussão sobre a identidade racial de famosos, como de Anitta, Meghan Markle, Pocah e o Gil, do BBB, pode nos ensinar sobre o colorismo?
É invasivo tentar determinar qual é o pertencimento racial de um indivíduo. Mas, com uma exceção: o sistema de cotas. Se você fala de um pertencimento racial para obter entrada de concurso público, na universidade, tem necessariamente de que fazer prova de que você vive as circunstâncias de ser negro.
As cotas existem para corrigir uma distorção socioeconômica. Por isso, há uma banca de pessoas que possa julgar se a declaração racial é verdadeira ou falsa.
Mas falando dessas pessoas públicas, dizer que alguém não é negro, quando claramente tem traços ligados à africanidade, é leviano. As experiências que as pessoas têm numa cidadezinha, em Niterói, no Pará, vão responder às culturas de cada lugar. É importante ouvir, então, qual é a vivência de cada um.
As pessoas se projetam em figuras públicas para entender suas identidades?
Necessariamente. Existe uma demanda dos movimentos negros de que haja pessoas negras nas novelas, nas propagandas, porque isso constrói o imaginário coletivo. Um exemplo é que vimos atrizes negras em papéis subalternos por anos. Há avanço em termos pessoas negras felizes, mostrando competências, em várias esferas, e simbólico ter em novelas, realities shows. Mas muito mais importante é perceber a distribuição das riquezas em termos raciais.
A filósofa Sueli Carneiro falou sobre que o colorismo atinge o "mercado de afetos" de mulheres negras. Como você analisa essa declaração?
Não deveria existir hierarquização entre mulheres negras de pele clara e escura. Mas, ela existe. E é porque ainda reproduzimos o ideário de que negros são passíveis de serem admitidos nos espaços públicos e no privado, do afeto, quando têm algum grau de miscigenação com o branco. As mulheres negras de pele escura estão ainda na base da pirâmide e carregam os maiores graus de opressão na sociedade.
Discutir colorismo nos permite perceber, no entanto, que nossa luta é a mesma, e que não consigo me libertar como mulher negra de pele clara, se eu não estiver lutando na mesma trincheira com minha irmã de pele escura.
Por isso, para combater na economia dos afetos o fato de as desconsideramos, por serem retiradas de suas complexidades, não se pode reforçar as hierarquias raciais e os arquétipos daquilo que elas deveriam ocupar na sociedade.
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