Diplomata, ela ajudou a prender assassino da série "O Paraíso e a Serpente"
A diplomata alemã Angela Kane é uma das principais referências internacionais sobre Desarmamento, Direitos Humanos e negociações de Paz. Coube a ela, inclusive, dar continuidade ao trabalho iniciado pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que foi morto no Iraque em um atentado. Angela liderou missões na África, América Latina, Europa e Ásia. Ela é professora de Ciência Política na França e hoje, morando na Áustria, é um dos membros do Centro de Desarmamento de Viena.
Mas apesar de sua carreira e papel significativo na política internacional, recentemente um fato do passado de Angela, que nem mesmo alguns amigos conheciam, a colocou em evidência. É que, entre 1975 e 1976, com apenas 26 anos, ela foi crucial para as investigações de crimes cometidos contra turistas na chamada "trilha hippie", que cobria Vietnã, Nepal e Índia e onde mais de 18 pessoas foram brutalmente assassinadas, vítimas do psicopata francês Charles Sobhraj. A história é tão incrível que virou a série "O Paraíso e a Serpente", da Netflix, na qual a atriz Ellie Bamber interpreta Angela.
Angela separou uma hora de seu domingo para conversar com Universa sobre a série - que reduziu seu papel significativamente - e relembrar um pouco como tudo aconteceu.
Olhando para sua trajetória, com tantos exemplos incríveis, parece que você sempre se dedicou a fazer do mundo um lugar melhor e mais seguro.
Tudo começou com o fato de que nasci logo depois da Guerra. Quando era adolescente, as pessoas ainda falavam muito de tudo que perderam com o conflito. Passamos a ter uma ideia distorcida do mundo e por isso cresci com a convicção de conhecer outras culturas, ter outras experiências, fazer coisas.
Como chegou à Tailândia, onde acabou sendo uma das peças mais importantes para descobrir e prender o psicopata francês, Charles Sobhraj, como mostra a série da Netflix, O Paraíso e a Serpente?
Deixei a Alemanha quando entrei para a faculdade e fui estudar nos Estados Unidos. Lá conheci meu primeiro marido [o diplomata Herman Knippenberg]. Nos casamos muito jovens, aos 21 anos, ninguém mais faz isso! [risos] Vivemos um ano na Holanda e depois um ano em Paris antes de ele entrar para a carreira diplomática e o primeiro posto foi justamente em Bangkok e tudo aconteceu. O caso Sobhraj praticamente caiu no nosso colo.
A série é fiel ao que aconteceu de fato?
Não exatamente. Fiz um relatório de coisas que não estavam de acordo com os fatos, mas no final das contas não mudaram uma linha do que pedi para corrigir. Fizeram o que queriam. [risos] Por exemplo, [Herman] nunca acordou no meio da noite e quase atirou em mim, é ficção pura.
Eu fiz muito mais do que a versão que filmaram. O que os produtores me disseram foi que queriam me colocar um pouco à parte, justamente como "a mulher de um diplomata". O que eu não era verdade, quer dizer, eu era casada com um diplomata, mas estava trabalhando como freelancer, aprendi o idioma...
Outra coisa que a série não deixa muito claro foi que tudo aconteceu em um período de tempo muito curto. Soubemos do desaparecimento do casal de holandeses em fevereiro e já em maio Sobhraj deixou a Tailândia.
Você se chateou com a forma como foi retratada?
Bom recebi muitos elogios, porque as pessoas que me conhecem hoje se surpreenderam quando descobriram meu papel na investigação porque só fui "revelada" no episódio final [Angela não usa mais o nome do ex-marido, por isso muitos não a associavam ao caso]. As pessoas se surpreenderam, mas foi há tanto tempo e não é um tema que possa ser trazido às mesas de jantar ou em um café [Risos]
Você teve medo ao lidar, tão jovem, com esse caso?
Não pensávamos em perigo e não seríamos alvo do Sobhraj porque tínhamos imunidade diplomática. Ele queria vítimas que não chamassem atenção., não queria vingança. Na verdade, o que aprendi nesse caso, usei depois nas negociações de Paz e desarmamento. Você não pensa em sua segurança primeiro porque senão se paralisa e não faz o seu trabalho. Há riscos, sempre, mas eles não são sua prioridade.
Marie-Andrée Leclerc alegou depois que não participou diretamente dos crimes...
Na época não sabíamos da primeira mulher dele, a francesa, Juliette, mas Marie-Andrée certamente sabia dos crimes e participou neles. Ela vivia no apartamento e era ela quem dava as drogas para as vítimas ficarem doentes. Estava envolvida, fosse por amor ou não (não sei dizer a motivação dela), mas confessou tudo para as autoridades para poder ser repatriada e morrer no Canadá, aos 39 anos, quando descobriu que estava doente. E posso corrigir outro detalhe da série: ela não era nada glamorosa como na série, com roupas bonitas.
Falando nisso, me vestiram com roupas escuras, até com mangas compridas! Eu nunca me vestiria com o que colocaram na série! Não tínhamos eletricidade, o ar condicionado era apenas no quarto, fazia muito calor e não usávamos nada com manga! Eu usava alça e manga curta, nunca cores escuras! [risos]
Como que começou sua carreira na ONU?
Meu ex-marido foi transferido para Nova York e acabei começando lá como uma editora de texto. Meu pensamento não ia além do de "quero um trabalho". Apenas quando fui transferida para o departamento do Secretário Geral, em menos de um ano, é que tudo ganhou outra dimensão. Conheci tantas pessoas interessantes, descobri tanta coisa.
Um dos meus primeiros trabalhos foi com questões de Direitos Humanos e sabia tão pouco na época! Percebi que poderia ter utilidade e ser importância. Mas meu ex-marido voltou a ser transferido para a Indonésia e lá trabalhei com o governo local. Foi quando senti que poderia fazer a diferença, mesmo que pequena, e queria isso para o resto da minha vida.
Infelizmente, não se encaixava com o casamento com um funcionário público, além, claro de outros problemas, por isso nos divorciamos. E desde então foi uma experiência incrível, vivi na África, na América Latina, trabalhando com Acordos de Paz.
Você conhecia Sergio Vieira de Mello e deu continuidade aos seus trabalhos na ONU?
Eu e Sergio não trabalhamos diretamente juntos, mas nos encontrávamos em reuniões. Ele estava vivendo no exterior na época em que entrei para ONU, era um ótimo colega. Sua morte foi muito trágica e nos afetou muito. Foi por causa de sua morte que nós [na ONU] passamos a tentar garantir mais segurança para os funcionários.
Mas, em operações de Paz, não tem como ser extremamente protegido, você tem que estar em situações perigosas que fazem parte do trabalho. Até então achávamos que a bandeira azul da ONU poderia nos resguardar, o que deixou de ser verdade. Antes mesmo do atentado ao Sérgio, depois da primeira tentativa de atentado à sede da ONU em Nova York, antes de 11 de setembro, tentamos mudar a estrutura de segurança do prédio, mas enfrentamos muita dificuldade.
Como uma alta executiva na Organização, como foi ver a ascensão feminina em posições chave, como as que você exerceu?
Instintivamente sempre tentei contratar mais mulheres porque gosto da dedicação e lealdade das mulheres, sem querer generalizar. Mulheres em geral eram muito mal tratadas. Imagine que na Alemanha pós-guerra, o marido tinha que dar autorização para a esposa trabalhar. Isso não faz muito tempo. E convivíamos com isso.
No meu caso, aos poucos fui encontrando a minha voz. No início, quando falava em uma reunião, via os homens balançando a cabeça como se concordassem. Em seguida, um colega homem repetia exatamente o que eu tinha dito e todos o elogiavam. Eu ficava furiosa! Por isso, aos poucos passei a dizer "obrigada por repetir o que disse e concordar comigo", e pararam de fazer isso comigo.
Mas as mulheres ainda precisam de muito encorajamento para ter posições mais altas, sabe? Eu digo às jovens hoje no mercado de trabalho, não esperem até ter 100% da qualificação para tentar uma posição mais alta. Os homens se candidatam com apenas 50% e 60% de preparo. Se você só tentar um trabalho do qual já sabe tudo não há por onde crescer ou aprender, então, se arrisque com 75% se ainda estiver insegura, mas se arrisque porque vai aprender o resto e crescer.
Sua trajetória é uma inspiração para as mulheres.
Que bom! Me lembro quando vi Margaret Anstee, a primeira mulher a ser nomeada a sub-secretária da ONU. Ela foi a primeira mulher a usar calças na ONU, em 1987! Foi uma surpresa, nenhuma de nós usava outro modelo que não fossem saias. Não era proibido, mas era o código que nós seguíamos. Depois que a vi, saí de lá imediatamente para comprar dois pares para mim. Porque é isso, você pode dar um exemplo como mulher com coisas indiretas como roupas e é importante.
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