Anorexia e depressão: vítimas que acusam Klein relatam danos psicológicos
Juliana* (nome fictício) não quer fazer acusações em público ou dar entrevista, mas, com incentivo da família, aceitou ter sua histórica contada. Desde 2017, quando deixou de frequentar a casa no bairro nobre de Alphaville, em Barueri (SP,), e o sítio em Boituva (SP) de Saul Klein, 67, ela vem lutando para ter uma vida normal.
Hoje com 23 anos, ela diz a Universa carregar um legado de marcas em sua saúde física e mental, que incluem dependência química, uma batalha contra um distúrbio alimentar e dificuldades para manter relações sexuais.
Eu não sei como falar sobre o que sinto. Talvez eu não consiga enxergar, descrever a dimensão do crime para acusar, mas eu consigo sentir ela, em medo, em culpa, em paranoia, em susto. Parece que tem frases dele que produzem efeitos na minha cabeça. Como um poder de até fazer a gente pensar e agir como ele queria [...] O pior é o que eu vou levar para sempre na minha cabeça, como tenho trazido nos últimos anos. Sonhos lúcidos, aterrorizantes, todos os dias. E não tem remédio que tire isso
Klein está sendo investigado pela polícia, por crimes sexuais. As denúncias foram feitas ao MP-SP (Ministério Público de São Paulo), em conjunto, por 32 mulheres: todas acusam de estupro o filho mais novo de Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, e afirmam que ele manteria uma rede de aliciamento e exploração sexual. Juliana não está entre as denunciantes no inquérito policial — não se sente segura para o fazer neste momento.
Assim como Juliana, Sabrina* (nome fictício) também teria sido recrutada antes de completar 18 anos, sob o pretexto de trabalhar para uma marca de biquínis. E teria se tornado uma das "preferidas" do empresário. A rotina de supostos abusos à qual era submetida, a fez desenvolver um quadro severo de distúrbios emocionais. Em setembro de 2020, aos 22 anos, ela tirou a própria vida.
Universa relata sua história em "A tragédia de Sabrina: a "preferida" de Saul Klein foi recrutada na escola". E na reportagem exclusiva "Caso Saul Klein: em relatos inéditos, 9 das 32 mulheres que acusam empresário de estupro descrevem rotina de abusos", as vítimas revelam como eram aliciadas, a rotina dentro das casas do empresário e como ocorriam as violações sexuais.
A reportagem teve acesso à íntegra de depoimentos das vítimas prestados ao MP, a trechos e decisões do inquérito policial, a dois processos cíveis movidos por mulheres contra Saul Klein e a outros três processos trabalhistas movidos por pessoas que ajudariam a recrutar as modelos e a organizar o dia a dia delas na casa e no sítio do empresário.
Universa também obteve três contratos nos quais Klein se compromete a pagar até R$ 800 mil pelo silêncio de três garotas. Dois deles foram confirmados por ele perante a Justiça em vídeos que foram obtidos por Universa; no terceiro, ele alegou que sua assinatura havia sido falsificada e obteve vitória em primeira instância. E entrevistou duas vítimas e seus familiares, entre outras fontes, sob condição de anonimato.
Em 2020, Saul Klein foi candidato a vice-prefeito de São Caetano do Sul (SP) pelo PSD e declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de R$ 61,6 milhões.
Procurado por Universa, o empresário, por meio de sua defesa, nega todas acusações (leia mais ao final da reportagem).
Viciada em remédio, com pânico e pesando 32 quilos
Aos 18 anos, já "aprovada" para ser uma das jovens garotas do suposto esquema de exploração sexual de Klein, Juliana conta que teria se tornado uma das "preferidas" dele — em depoimento à Justiça, o empresário classificou o relacionamento dos dois como namoro.
Isso significava, diz Juliana, que ela seria "selecionada" para sessões de abuso sexual com ele, obrigatoriamente sem o uso de preservativo, e, em várias ocasiões, com penetração anal contra a sua vontade. Sem outras opções de trabalho e já tendo avisado a família que tinha conseguido um bom emprego em São Paulo, ela, aos poucos, foi se tornando financeira e emocionalmente dependente do suposto esquema.
Pressionada a manter o biotipo de modelo, "sem peito e sem bunda", como lhe tinha sido pedido na época em que teria sido recrutada, conta ter desenvolvido anorexia. Depois de deixar de frequentar a casa de Klein, conta que chegou a pesar 32 quilos. Outras garotas relatam terem sido submetidas a controle de peso dentro da casa: deveriam estar, sempre, muito magras. E que também teriam que fazer procedimentos estéticos, como aplicação de botox.
Juliana diz que o consumo de remédios hipnóticos para insônia junto com álcool, principalmente antes dos encontros sexuais, acabou se tornando dependência química. Segundo a bula do fármaco usado, quando sua ingestão é associada à bebida alcoólica "promove um aumento dos efeitos sedativos ou hipnóticos, prejudicando o estado de vigília, concentração e os reflexos".
Ela também afirma que contraiu ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) porque o empresário obrigava as jovens a terem contato sexual sem o uso de preservativo,
Quando Juliana deixou o suposto esquema de exploração sexual, sua mãe teria procurado as agenciadoras para que elas pudessem custear os vários tratamentos médicos de que a filha estaria precisando. De Ana Paula, a "Banana", que chefiaria as garotas da casa, teria recebido uma mensagem dizendo que pessoas como Juliana "mentem para si mesmas" e que Klein, quando jovem, "não tinha tempo para pânico. Fez três faculdades. Suou a camisa ao lado do pai".
O pai de Saul, Samuel Klein, morto em 2014, também estaria envolvido em um escândalo sexual. No dia 15 de de abril, uma reportagem da Agência Pública revelou que o fundador das Casas Bahia teria mantido um esquema de exploração sexual envolvendo menores de idade durante décadas. A reportagem mostra que acordos de confidencialidade foram feitos com algumas das vítimas.
Internação psiquiátrica e automutilação
Gisele* (nome fictício) conta que tinha apenas 16 anos quando recebeu, em 2015, a proposta de R$ 2 mil por um fim de semana com um excêntrico milionário que gostava de viver cercado de jovens garotas.
Ao passar no "teste", ela teria recebido da agenciadora Ana Paula uma identidade falsa assim como uma história fantasiosa sobre sua vida que deveria ser contada a ele — quem era, quais suas origens e eventos inexistentes pelos quais teria passado.
Após seis meses frequentando as casas de Klein, conta que teve a primeira crise de depressão e que passou por internação psiquiátrica, sendo levada depois a uma casa de praia para um período prolongado de afastamento. E que teria voltado a frequentar as residências do empresário após se recuperar. Ali, diz que era encorajada, sempre, a falar com voz infantil e a referir-se ao anfitrião e às outras garotas no diminutivo.
A salvação na casa era termos umas às outras, já que fora dali não existia vida. Criávamos um vínculo forte porque eram vários episódios de ofensas, humilhações, maus tratos
Quase dois anos depois, conta que teve uma segunda crise: desta vez, teria cortado os próprios pulsos — a reportagem obteve imagens dela com os punhos suturados. E que teria então sido dispensada do suposto esquema de aliciamento. Em depoimento ao Ministério Público, ela diz que, depois de recuperada, recebeu visitas de Klein e de outras pessoas que trabalhavam para ele. E afirma que foi mandada para uma temporada fora do país, com passagem paga por pessoas ligadas a ele.
Médicos ficavam na casa para tratar doenças venéreas
Renata* (nome fictício) conta que teria mantido relações sexuais com Saul Klein logo na primeira vez que o encontrou, em 2014, após ter sido avisada de que os R$ 3 mil que lhe haviam sido prometidos para fazer figuração em uma festa na casa do empresário não seriam pagos caso ela se recusasse.
"Saul forçou o sexo anal até conseguir. Machucou. Ele não usou preservativo, foi uma relação bem rápida. Muitas meninas pegaram doenças, HPV, algumas ficavam com estado avançado da infecção", diz.
O empresário teria repetido esse mesmo comportamento diversas vezes, segundo depoimentos de outras mulheres. Em 2015, Renata contraiu HPV de alto risco, doença que pode evoluir para câncer de útero — Universa teve acesso ao laudo do exame.
No inquérito policial que investiga Saul Klein, pelo menos outras cinco mulheres relataram terem contraído HPV ou alguma outra infecções sexualmente transmissível durante o período em que teriam frequentado a casa do empresário. Uma sexta mulher, que não está entre as 32 que acusam formalmente o empresário, também disponibilizou para a reportagem exames médicos. Ela alega ter contraído as ISTs na casa do empresário.
Segundo as vítimas, a ginecologista Silvia Petrelli atendia a todas nas residências do empresário e que seria responsável por prescrever tratamentos para as doenças venéreas que elas ou o empresário viessem a ter. As mulheres também relatam a presença de um segundo médico pelas casas de Klein, o cirurgião plástico Ailthon Takishima — este, dizem, fazia intervenções estéticas a pedido do milionário, como aplicação de botox, e também trataria das infecções sexualmente transmissíveis.
A presença dos médicos nas residências de Klein é confirmada por seu advogado, André Boiani e Azevedo. Os médicos foram procurados por Universa. Petrelli afirmou que jamais praticou ou presenciou qualquer ato ilícito. "Demonstrei isso à delegada de Barueri [responsável pelo inquérito policial] e nada mais tenho a comentar a respeito", disse. Por meio de sua secretária, Takishima informou que não iria se pronunciar: "O que ele tinha para falar já conversou com a delegada do caso".
Além de Klein, os médicos e as supostas agenciadoras Andrea, Ana, Aline e Iris estão sendo investigados pelo Ministério Público de São Paulo. Entre os possíveis crimes que teriam cometido estão "mediação à satisfação de lascívia, favorecimento de prostituição e falsificação de documentos públicos" — no caso, de identidades.
"A relação é de poder, não de amor", diz psiquiatra de vítima
"Juliana* vinha de uma internação quando comecei a acompanhá-la, de um surto psicótico. Hoje ela segue um tratamento com medicamentos e psicoterapia. Tem transtorno afetivo bipolar e transtorno de múltiplas drogas — dependência química, que ela diz que desenvolveu lá na casa", afirma o psiquiatra Rodrigo Russowski.
Segundo o profissional relatou a Universa, com autorização da paciente e de sua mãe, quando Juliana deixou o suposto esquema de exploração sexual, "tinha muitos sintomas psicóticos, estava em crise de abstinência do uso de drogas, tinha medo que pessoas ligadas a Saul pudessem ler o pensamento dela. Ela tem episódios de terror noturno, crises de pânico. Um quadro de transtorno e de humor grave, com sintomas psicóticos, que são algo grave", diz.
Além de Juliana, outras quatro mulheres relataram ao Ministério Público que, dentro das casas de Klein, fariam uso abusivo de remédios hipnóticos usados para insônia, muitas vezes encorajadas ou até obrigadas pelo estafe do empresário. O próprio anfitrião, segundo elas, fazia uso constante do medicamento. Segundo a bula do fármaco usado, quando sua ingestão é associada à bebida alcoólica "promove um aumento dos efeitos sedativos ou hipnóticos, prejudicando o estado de vigília, concentração e os reflexos".
Russowski explica que o retorno das garotas às casas de Saul Klein ou a remuneração que receberiam dele não eliminam o caráter abusivo da relação. Para ele, o que existiria no suposto esquema de crimes sexuais de Saul Klein seria um ciclo "narcisista" armado exclusivamente para o seu prazer, sem empatia com as mulheres.
Esse tipo de relação é de poder, não de amor. As forças que vão agir têm a ver com poder, e não com afeto. E, nesse sentido, era muito desigual
Outro lado
O processo instaurado pelo Ministério Público de São Paulo em novembro está na fase do inquérito policial e da coleta de depoimentos. Vítimas e testemunhas estão sendo ouvidas pela polícia. O MP aponta a possibilidade de Klein ter cometido nove crimes: tráfico de pessoas, estupro, estupro de vulnerável, favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, mediação à satisfação de lascívia (induzir alguém a satisfazer os impulsos sexuais de outra pessoa), favorecimento da prostituição e exploração sexual e manutenção de casa de prostituição (com possibilidade de aumento de pena de 1/3 a 2/3 por transmissão de infecções sexualmente transmissíveis) e falsificação de documentos públicos. As penas para esses crimes vão de um a 15 anos de reclusão, com aplicação de multa em alguns casos.
A Universa, o advogado de Saul Klein, André Boiani e Azevedo, nega as acusações de crime sexual contra seu cliente. Ele afirma que o empresário teve contato com diversas jovens nos últimos anos e que se relacionou com algumas delas, mas que era uma relação de "sugar daddy", por meio da qual se "mantém um pagamento, mas não por sexo, [em que ele] sustenta, trata todas como namoradas, essa é a verdade em relação ao Saul".
Azevedo afirma porém, que nunca houve pagamentos diretos às moças por parte de Klein, pois isso seria intermediado pela empresa de eventos Avlis. "Elas saberiam que poderia haver aproximação sexual, mas que não seria obrigatório. Nada do que se diz em termos de violência, de obrigatoriedade, de coação, ele participou", afirma Azevedo.
Sobre as alegações de que os abusos de Klein teriam causado danos psicológicos, Azevedo afirma "lamentar que façam esse tipo de associação, na medida em que ele não praticou essas condutas que elas relatam". "Se existir algum trauma, alguma coisa, ele desconhece, e lamenta profundamente, mas não tem nenhum tipo de responsabilidade por isso."
O advogado confirma que os médicos Silvia Petrelli e Ailthon Takishima trabalhavam nas casas de Klein, mas que "nenhuma moça jamais foi obrigada a fazer coisa alguma [intervenção estética]. Isso era algo que o Saul disponibilizava".
E afirma que a maioria das mulheres "já comparecia com doenças venéreas". "A maioria dessas moças já tinha uma vida de garota de programa, de acompanhantes, se apresentavam ali em uma situação de modelo para fazer uma figuração e aceitar a aproximação por interesses próprios delas".
Sobre as vítimas alegarem terem sido enganadas em relação ao trabalho que fariam, Azevedo diz que Klein não tinha conhecimento disso, pois contratou uma empresa para fazer o processo diretamente com as garotas e para pagá-las pelos trabalhos. Segundo ele, "o que era passado para o Saul" era que a empresa informaria que haveria "aproximação sexual". "Elas poderiam concordar se quisessem. Quando chegavam para falar com ele, jamais mostraram qualquer tipo de desconhecimento."
Em relação às acusações de que Klein se relacionaria com menores de idade, o advogado diz que a Avlis enviava documentos falsos. E que as denúncias contra seu cliente são parte de uma tentativa de extorsão da dona da agência, Marta Gomes da Silva, após elas ter seus serviços dispensados em 2019. Klein, no entanto, não registrou denúncia de extorsão contra Marta.
Sobre as denúncias de violência sexual, física e psicológica, Azevedo afirma que isso nunca aconteceu. "Assim como tem esses relatos das pessoas [denunciando], existem inúmeras outras negando essa situação [de violência] e demonstrando a realidade."
Como denunciar violência contra a mulher
Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.
É possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos, do MMFDH (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos).
Mulheres vítimas de estupro podem buscar os hospitais de referência em atendimento para violência sexual, para tomar medicação de prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), ter atendimento psicológico e fazer interrupção da gestação legalmente.
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