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Saul Klein: por que Justiça ignora relatos de vítimas sobre abusos sexuais

Yasmin Ayum/UOL
Imagem: Yasmin Ayum/UOL

Camila Brandalise e Pedro Lopes

De Universa

02/05/2021 04h00

Assim que o inquérito contra Saul Klein, 67, foi instaurado, em novembro de 2020, com denúncias de estupro, o Ministério Público de São Paulo pediu medidas cautelares que incluíam retenção de seu passaporte e proibição de contato com as primeiras 14 mulheres que relataram ter sido vítimas de abusos sexuais. Na sequência, outras 18 jovens juntaram suas denúncias ao processo e solicitaram a mesma proteção. Mas, em fevereiro, a Justiça negou a solicitação e retirou as medidas de afastamento que já haviam sido concedidas.

Filho mais novo do fundador das Casa Bahia e com uma fortuna declarada de R$ 61,6 milhões, Klein está sendo investigado pela polícia por aliciamento, exploração sexual e lesão corporal, entre outros crimes. Procurado por Universa, o empresário, por meio de sua defesa, nega todas acusações (leia mais ao final da reportagem).

Saul Klein - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo
O empresário, fantasiado de nobre europeu, rodeado de mulheres em uma de suas festas: ele é acusado de estupro por 32 mulheres
Imagem: Reprodução/TV Globo

A decisão do juiz Fabio Calheiros do Nascimento, da 2ª Vara Cível de Barueri (SP), ao revogar as medidas cautelares, acatou o argumento da defesa de Klein de que a relação que existia entre ele e as vítimas era "sugar daddy". O termo é usado para se referir a homens mais velhos que têm o fetiche de sustentar financeiramente mulheres mais jovens, chamadas então de "sugar babies", em troca afeto e/ou sexo. Em sua decisão, o magistrado diz: "Sendo [as vítimas] 'babies', ganha força a ideia de autonomia e, por conseguinte, perde força a de constrangimento".

Nos depoimentos, as vítimas detalham violações sexuais que Klein teria praticado com elas estando desacordadas e práticas forçadas que, segundo elas, resultaram em lesões e problemas psicológicos. Esses relatos não são citados na decisão de Nascimento. A Justiça avalia, portanto, que houve consentimento por parte das jovens.

Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos entre 2005 e 2010, Paulo Vannuchi considera a decisão "preocupante" e "escandalosa". "É sinal verde para quem segue fazendo isso. E para quem não faz e tem dinheiro pensar: 'Por que não?' Está na hora de o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) intervir. Quando há situações como essa do caso Klein, deve haver um procedimento que constranja o juiz em questão", afirma Vannuchi a Universa.

Se envolveu dinheiro ou poderes econômicos para promover aliciamento em relações sexuais, há violação de direitos humanos, é crime

"Sistema é perverso e transforma vítima em ré"

Para a ex-ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres do governo Dilma Rousseff (PT), Eleonora Menicucci, é impossível descartar uma situação de constrangimento a partir dos relatos das vítimas ao MP. Para ela, a decisão do magistrado é "emblemática" para mostrar como a Justiça trata as mulheres.

Nós, gestoras, ministras, pesquisadoras, batalhamos muito para garantir que haja credibilidade na fala das vítimas. Mas vemos que a violência continua quando juízes, homens, não acreditam no que elas dizem. Elas eram tratadas como subordinadas a ele, eram jovens e tinham medo: se não cedessem, seriam dispensadas. Isso também configuraria assédio sexual. Além disso, não deveria haver nenhuma possibilidade de flexibilização sobre a questão da violência sexual

garotas no quarto - saul klein - Arquivo pessoal/UOL - Arquivo pessoal/UOL
Registro obtido por Universa mostra várias garotas em um quarto na casa de Klein
Imagem: Arquivo pessoal/UOL

Outro ponto que também foi ignorado pelo juiz, segundo Menicucci, é o fato de os crimes sexuais envolverem muita culpa por parte das próprias vítimas. "O sistema é tão perverso que faz com que elas se sintam culpadas por terem ficado lá, por terem voltado. Transforma a vítima em ré, sendo que não tinham margem de consciência nenhuma sobre a violência que estavam sofrendo."

O MP pediu que a decisão do juiz de revogar as medidas protetivas fosse revista, mas não foi atendido. A advogada das 32 vítimas, Gabriela Souza, entrou com um recurso que ainda será julgado pelo TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo).

Na sexta (30), Universa publicou três reportagens sobre o suposto esquema de exploração sexual: "Caso Saul Klein: em relatos inéditos, 9 das 32 mulheres que acusam empresário de estupro descrevem rotina de abusos", "Anorexia e depressão: vítimas que acusam Klein relatam danos psicológicos", "Tragédia: recrutada na escola, uma das 'preferidas' de Klein morreu aos 22". E, neste sábado (1º), a reportagem "Exclusivo: em vídeo, Klein diz que pagou R$ 800 mil por silêncio de vítimas" mostra trechos de depoimentos do empresário confirmando ter pagado R$ 800 mil para duas mulheres em troca de silêncio e em que ele assume ter namorado uma garota de 17 anos que teria mentido a idade apresentando documento falso, em uma ação arquivada em setembro de 2020.

Para esta série de reportagens, além dos processos cíveis e dos vídeos de depoimentos já citados, Universa também teve acesso à íntegra dos relatos das vítimas prestados ao MP, a trechos e decisões da Justiça e do inquérito policial e a três processos trabalhistas movidos por pessoas que ajudariam a recrutar as modelos e a organizar o suposto esquema de exploração sexual. Também foram entrevistadas duas vítimas e seus familiares, entre outras fontes.

No último dia 15 de abril, uma reportagem da Agência Pública revelou outro escândalo sexual envolvendo a família Klein. Vítimas acusam o pai de Saul, o empresário Samuel Klein, morto em 2014, de ter mantido um suposto esquema de exploração sexual de crianças e adolescentes. A reportagem mostra que acordos de confidencialidade foram feitos com algumas das vítimas — prática também adotada pelo filho Saul.

Em 2020, Saul Klein foi candidato a vice-prefeito de São Caetano do Sul (SP) pelo PSD e declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de R$ 61,6 milhões.

A ex-ministra Eleonora Menicucci - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
A ex-ministra Eleonora Menicucci
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Pagamento não dá direito ao agressor de cometer violência

"Em uma denúncia de crime sexual, o que é preciso provar é o consentimento. Quando uma mulher diz que não consentiu, a afirmação deve ser levada a sério. Nunca, em nenhuma situação, nem de 'sugar daddy', deve-se pressupor que não houve violência", afirma a Universa a ex-procuradora federal Deborah Duprat. "Se elas afirmam que foram violentadas, teria que partir do princípio que houve, e o réu precisaria provar que não houve."

Para Alice Bianchini, doutora em direito penal pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), conselheira federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e autora do livro "Crimes Contra Mulheres" (ed. Juspodivm), o argumento de que havia uma relação de "sugar daddy", com algum tipo de remuneração, reforça uma visão machista sobre as mulheres:

Não é porque há pagamento que a mulher vira um instrumento na mão de um agressor

Nos relatos obtidos por Universa, jovens afirmam que Klein forçava contato sexual anal sem consentimento. Uma diz que o empresário a obrigava a tomar bebidas alcoólicas e remédios hipnóticos para insônia e que ele a violava enquanto estava desacordada. Segundo a bula do fármaco, quando sua ingestão é associada à bebida alcoólica "promove um aumento dos efeitos sedativos ou hipnóticos, prejudicando o estado de vigília, concentração e os reflexos". Em um terceiro relato, uma vítima diz que Klein "as penetrava dormindo". "Era assustador", relatou.

Em vídeo, Saul Klein aparece dançando com jovem que alegou ter sido vítima de abuso

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Gabriela Souza, advogada gaúcha que representa as 32 mulheres que acusam Saul Klein de estupro, diz que o argumento de que o empresário era um "sugar daddy" inaugura uma "tese machista" que começa a ser aceita:

Nada mais é do que tentar tornar o estupro um fetiche. E estupro não é fetiche, é crime

O andamento do processo contra o milionário, segundo a advogada, representa a "maneira lamentável" com que o Brasil trata vítimas de violência de gênero que procuram a Justiça. "Dizer que elas tinham liberdade em uma situação de medo, estando vulneráveis e ao lado de seguranças armados, é negligenciar os direitos delas. Além disso, viola todos os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário."

À frente do projeto Justiceiras, a promotora Gabriela Manssur, integrante da Ouvidoria das Mulheres do Conselho Nacional do Ministério Público, foi a responsável por colher os primeiros depoimentos de vítimas. Segundo Manssur, a necessidade de intervenção do sistema judicial após uma decisão que não leva em conta o relato e o sofrimento da mulher e a deixa desprotegida está prevista na Constituição, ao mencionar o direito à vida. "Assim como a Convenção de Belém do Pará, ao dispor acerca do respeito à dignidade da pessoa humana, em especial das meninas e mulheres de todo o mundo."

"Retirar medidas protetivas pode prejudicar a investigação"

Para a advogada criminalista Soraia Mendes, referência nos direitos das mulheres no país, esse é mais um caso emblemático ao mostrar a dificuldade do Judiciário em lidar com denúncias de crimes de gênero. Para a professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, que já representou vítimas em órgãos internacionais, como a OEA (Organização dos Estados Americanos), não parece "que seja possível falar em consentimento" quando as mulheres que acusam Klein teriam celulares confiscados, precisariam fazer uso de álcool e medicamentos e seriam vigiadas por seguranças armados.

Estamos falando de meninas de 18 anos ou menos, extremamente inexperientes, que vêm para São Paulo onde ficam sozinhas, com o sonho de ser modelo, e são ludibriadas. O processo já se inicia com uma fraude. Esse é um contexto que precisa ser levado em consideração para discutir o que é consentimento. Sabendo que o homem é rico, poderoso, está cercado de seguranças, como ela diria não estando tão vulnerável? Pensando que poderia sair dali e ser perseguida, ou ver portas se fechando?

Para a criminalista, admitir uma relação de "sugar daddy" num contexto como esse é "perverso". "É um caso que precisa ser pensado sob perspectiva da dignidade humana. Existe situação de não consentimento flagrante", fala.

O fato de elas terem voltado a encontrar Klein ou mesmo solicitado novos trabalhos, outro argumento usado pelo juiz para sugerir que não houve constrangimento, também não significa que a violência está descartada. "É tarefa da esfera pública jurídica, de todos os operadores do sistema, compreender que esse tipo de situação tem armadilhas psicológicas, pois são garotas, algumas menores, ganhando R$ 3 mil em um final de semana e vivendo sob ameaças veladas."

A jurista ainda afirma que ao revogar as medidas protetivas, a decisão coloca toda a investigação em risco. "É mais do que elementar que existe risco de comunicação, de contato e de aproximação dele em relação a elas. Pode haver uma influência negativa no sentido das vítimas alterarem seus relatos. Essa decisão pode colocar em risco tudo aquilo que foi construído pelo conjunto de mulheres. Estamos falando de crimes em que a palavra da vítima é fundamental."

Denúncias ganharam peso pela quantidade de vítimas

Advogada criminalista e professora de direito penal, Adriana D´Urso afirma que a decisão do juiz Fabio Calheiros do Nascimento de retirar as medidas de distanciamento que protegiam 14 vítimas e de argumentar que o relacionamento de Klein com elas seria de "sugar daddy", mostra uma linha de raciocínio do magistrado e "já adianta um pré-julgamento". "Ele já está contaminado com um viés, pendendo para um ou outro lado", diz.

Mas, segundo D'Urso, essa análise não está vinculada à sentença que será dada ao final do processo. "Ele pode não ter levado alguns pontos em consideração agora por achar que não era o momento, mas, ao final, rever e mudar esse posicionamento."

A professora de direito penal D´Urso explica ainda que provas de crimes sexuais são frágeis porque, na maioria das vezes, não têm testemunhas, por isso se dá especial relevância à palavra da vítima. Como no caso de Saul Klein as garotas relataram sofrer violência uma em frente às outras, esse cenário muda. Bem como a quantidade de mulheres que o denunciaram, 32.

"Havendo multiplicidade de vítimas, todas narrando o mesmo 'modus operandi', é óbvio que as denúncias ganham força. E isso fortalece umas às outras inclusive psicologicamente."

Procurado por Universa para comentar o caso, Ministério Público de São Paulo informou que, por se tratar de um crime sexual, o processo corre em segredo de Justiça e nenhuma informação pode ser divulgada.

O juiz Fabio Calheiros do Nascimento também foi procurado pela reportagem e disse que não poderia se manifestar porque o processo é sigiloso. Afirmou, porém, "que todas as decisões proferidas por um juiz são sujeitas a recursos e não é diferente neste caso".


"Fazia eu me sentir especial e depois era show de horrores"

Todas as garotas afirmam que havia pagamentos para participação em festas e para ficar na casa de Saul Klein durante a semana. Eram cerca de 30 a 40 hóspedes por final de semana, geralmente no sítio dele em Boituva (SP), e cinco a seis nos outros dias. Também afirmam ter ganhado presentes do empresário, como sapatos, roupas e bolsas de grifes de luxo.

Na casa, elas tinham aulas de piano, balé, debates e performances teatrais. Ele queria ser chamado por elas de "Zinho" e, em alguns momentos, de "príncipe".

Em um dos depoimentos, uma das vítimas fala da relação de dependência que teria sido desenvolvida com o suposto abusador:

Criei uma dependência emocional com Saul, me senti usada, pois ele era muito manipulador. Em alguns momentos, fazia eu me sentir especial, em outros, era um show de horrores, o que me deixava muito confusa. Ele dava presentes para as meninas também, e assim, não conseguíamos sair da situação pela manipulação psicológica, dependência e a intimidação. Era difícil manter a sanidade mental naquele ambiente. Aguentava quieta, pois não tinha amor próprio

Nas festas no sítio do empresário, não seria permitido que as mulheres fossem embora antes do final de semana acabar. A porta ficaria trancada. As jovens relataram ouvir constantes ameaças para que não falassem sobre o que acontecia nos encontros com o empresário. Uma delas afirma ainda conviver com o medo, inclusive de que ele mande pessoas para persegui-la.

Outro lado

O Ministério Público de São Paulo aponta a possibilidade de Klein ter cometido nove crimes: tráfico de pessoas, estupro, estupro de vulnerável, favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, mediação à satisfação de lascívia (induzir alguém a satisfazer os impulsos sexuais de outra pessoa), favorecimento da prostituição e exploração sexual e manutenção de casa de prostituição (com possibilidade de aumento de pena de 1/3 a 2/3 por transmissão de infecções sexualmente transmissíveis) e falsificação de documentos públicos. As penas para esses crimes vão de um a 15 anos de reclusão, com aplicação de multa em alguns casos.

A Universa, o advogado de Saul Klein, André Boiani e Azevedo, nega as acusações de crime sexual contra seu cliente. Ele afirma que o empresário teve contato com diversas jovens nos últimos anos e que se relacionou com algumas delas, mas que era uma relação de "sugar daddy", por meio da qual se "mantém um pagamento, mas não por sexo, [em que ele] sustenta, trata todas como namoradas, essa é a verdade em relação ao Saul".

Afirma porém, que nunca houve pagamentos diretos às moças por parte de Klein, pois isso seria intermediado pela empresa de eventos Avlis. "Elas saberiam que poderia haver aproximação sexual, mas que não seria obrigatório. Nada do que se diz em termos de violência, de obrigatoriedade, de coação, ele participou".

Em relação às acusações de que Klein se relacionaria com menores de idade, o advogado diz que a Avlis enviava documentos falsos e que as denúncias contra seu cliente são parte de uma tentativa de extorsão da dona da agência, Marta Gomes da Silva, após elas ter seus serviços dispensados em 2019. Klein, no entanto, não registrou denúncia de extorsão contra Marta.

Como denunciar violência contra a mulher

Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

É possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

Mulheres vítimas de estupro podem buscar os hospitais de referência em atendimento para violência sexual, para tomar medicação de prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), ter atendimento psicológico e fazer interrupção da gestação legalmente.