Profissionais do sexo: "abuso não é autorizado porque homem está pagando"
Pagar ou bancar uma mulher para ter qualquer tipo de relação inclui carta branca para se fazer o que quiser com ela? Apesar de haver uma resposta óbvia — não —, esse entendimento ainda não é claro socialmente. Além de alguns homens pensarem que podem tudo e não há espaço para consentimento feminino quando há um acordo financeiro em jogo, também há instituições que aceitem essa ideia. Nesse argumento, por exemplo, se baseou um juiz em uma decisão relacionada a um caso recente: as denúncias de exploração sexual contra o empresário Saul Klein.
Fabio Calheiros do Nascimento, juiz da 2ª Vara Cível de Barueri (SP), revogou medidas cautelares de 14 mulheres contra Klein, 67, denunciado por estupro por um total de 32 vítimas. O magistrado ignorou os relatos de violência e aceitou a tese da defesa de Klein, que afirmou que ele tinha uma relação de "sugar daddy", termo usado para se referir a homens mais velhos que têm o fetiche de sustentar mulheres mais jovens em troca de afeto e/ou sexo. Por isso, segundo o juiz, "perde força a ideia de constrangimento".
"O fato de ser 'sugar baby' não significa que a mulher tem que aceitar tudo. O cara pode pensar: 'Estou pagando, então vou colocar dentro do quarto e, a hora que quiser, vou entrar e vamos transar'. Mas isso não existe", afirma a paulistana Raquel*, que viveu esse tipo de relação com homens mais velhos por três anos (o nome foi alterado a pedido da entrevistada). "Ele pode pagar minha faculdade, meu aluguel, me dar mimos, mas tem limite. Se segurou no meu braço de uma forma agressiva, por exemplo, não volto mais. Nos sites de relacionamentos 'sugar' inclusive há um canal para denunciar homens que são agressivos ou violentos", diz ela.
Universa ouviu outras mulheres, uma ex-garota de programa e uma acompanhante de luxo, sobre o assunto, e ambas são incisivas na mesma afirmação: dinheiro não é passe livre para abusos. "Quando se fala em prostituição, existe uma ideia errada de que a pessoa está comprando a mulher, que na verdade está vendendo um serviço. Mesmo na relação 'sugar', acredito que tem que haver um acordo", afirma Gabi Benvenutti, 31, que foi Lola Benvenutti até 2015, quando deixou a profissão de garota de programa e parou de alimentar um blog em que narrava encontros sexuais com clientes.
Gabi, que foi trabalhadora do sexo dos 18 aos 23 anos, diz que sempre estabelecia um contrato muito claro de como iria funcionar e o que seria ou não permitido com seus clientes. "Na prostituição há uma relação um pouco mais instituída que a de 'sugar', que tem os limites mais borrados. Às vezes a garota quer alguém para pagar a faculdade, e o cara diz que só vai bancá-la depois de sete encontros, algo do tipo. É uma dominação", analisa ela, que tem mestrado em Educação Sexual pela Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) e entrevistou profissionais do sexo para sua tese.
O advogado de Klein, André Boiani e Azevedo, confirmou a Universa o argumento de que a relação era de "sugar daddy" e de que o empresário se relacionava com garotas mais jovens, mas diz que não havia contato forçado ou sem consentimento. Segundo Boiani, o pagamento seria feito por meio de uma agência que contrataria as garotas.
"Quem já comprou de tudo começa a querer comprar pessoas"
Em sua pesquisa, Gabi Benvenutti entrevistou prostitutas de luxo e conta que uma delas, a certo ponto da carreira, conheceu um homem que a pagava para que ficasse só com ele. "Ela aguentou um mês porque ele agia como se a tivesse comprado. Tinha que estar disponível para tudo. Era quase uma situação de escravidão, ela se sentia um objeto", conta Gabi. "Ela me disse: 'Quem tem muito dinheiro e já comprou de tudo, começa a querer comprar pessoas'."
A própria Gabi conta situações de constrangimento pelos quais passou.
Na faculdade, um homem tentou me beijar à força. Minha prima tentou me ajudar e ele disse: 'Você sabem quem ela é?', como se, pelo fato de ser prostituta, todo mundo pudesse fazer o que quiser comigo.
"Posso dizer não para qualquer homem"
Acompanhante de luxo em Brasília desde 2016, Cláudia de Marchi deixou uma carreira de 11 anos como advogada e diz que, quando decidiu se tornar garota de programa, já criou um filtro de seleção bastante rigoroso, justamente para não ter que lidar com situações de violência ou constrangimento. "Acho que se algo me acontecesse, não teria coragem de denunciar. Sei como o Judiciário brasileiro menospreza a palavra da mulher. É uma dupla violência", diz.
Por isso, se não sentir que é respeitada já na primeira conversa pelo WhatsApp com o cliente, Cláudia não deixa a negociação seguir.
Tenho 3.800 contatos bloqueados. Eu noto na forma de falar comigo quem são os caras que acham que 'vou pagar, posso tudo'. Eles chegam te tratando como objeto, dizendo 'quero fazer tal coisa com você'. E são coisas absurdas
Cláudia lançou o livro "De Encontros Sexuais a Crônicas - O Diário de Uma Advogada e Acompanhante de Luxo Feminista" (ed. Clube de Autores) em 2018. Feminista e ciente do que significa uma violência sexual, ela diz ter consciência de que pode, e deve, dizer não a hora que quiser, caso não queira continuar uma relação ou não se sinta confortável. "Uma vez encontrei um cliente em um hotel. Já nas preliminares, achei péssimo, não gostei. Disse: 'Olha, acho que não vai rolar, fiquei de pé, me vesti e ele entendeu."
Poder dizer não sempre que achar necessário, para ela, é um direito de toda mulher em relacionamentos, pagando ou não. Mas Cláudia reconhece que muitas profissionais do sexo, mais vulneráveis, muitas vezes são submetidas à violência justamente por precisarem de dinheiro. "Tive privilégios, uma experiência profissional, acesso à educação, estabilidade financeira. Mas sei que não é assim com a maioria das trabalhadoras do sexo."
No entanto, ela reforça que a mulher pode e deve dizer não, independentemente do papel que esteja exercendo na relação. "Não está liberado que ela seja agredida só porque tem relação de pagamento. Ou então vão ter que colocar no Código Penal: 'é estupro exceto quando a mulher for acompanhante ou sugar baby'. Violência não pode ser relativizada."
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