Ruth Rocha: "As crianças não mudaram. Nós mudamos a maneira de tratá-las"
Ruth Rocha gosta de uma celebração com casa cheia. Mas nos seus 90 anos, completados em 2 de março, a festa teve de ser virtual. Na falta de uma reunião em família, mandou um almoço para as casas de parentes, e comeram todos juntos, mesmo a distância.
Já vacinada com as duas doses da CoronaVac, a escritora segue tomando cuidados e produzindo de sua casa, em São Paulo. Durante a pandemia, arrumou arquivos e gavetas e até escreveu uma obra nova, "O Grande Livro dos Macacos", atualmente em fase de revisão. E chegou a escrever outra história, inspirada no clã Bolsonaro, sobre um rei muito mandão que, na verdade, era comandado pelos filhos. "E os filhos eram três bonecos pendurados na mão de um outro homem: de um idiota", conta.
Mas eu não tive coragem de publicar. Eu acho esse povo do governo muito cruel, muito ruim. Eu tenho medo desse povo do Bolsonaro
Ruth também assinou o contrato para que seu livro infantil de maior sucesso, "Marcelo Marmelo Martelo", de 1976, vire série de TV, produzida pela ViacomCBS — ainda sem previsão de estreia.
A escritora conta que lê muito, mas que, agora, por causa da vista cansada, sua irmã tem feito leituras com ela por telefone. "Eu sou muito cuidada. Tenho uma família muito grande que me distrai muito, todo dia tem uma novidade", diz a escritora. Em entrevista a Universa por telefone, Ruth fala sobre feminismo, literatura e as preocupações com a crise política e sanitária do país.
UNIVERSA: Você já comentou que a esperança é o sentimento que leva a gente para frente. Hoje, o que te dá esperança?
Ruth Rocha: Ah, eu não posso dizer que eu vou presa. Está dito, né? [risos] Eu vivo esperando acabar este governo, é isso o que eu vivo esperando. Eu acho que eu espero mais acabar este governo do que acabar a pandemia.
Você completou seus 90 anos em meio à pandemia. Como foi a celebração e como tem passado esse período?
Estou trancada há mais de um ano. Então, a comemoração foi virtual. Eu mandei uma comida para as pessoas, comida de restaurante. E aí nós comemos juntos. Cada um pediu uma coisa, e eu comi camarão, porque eu sempre como camarão. Eu já tomei a vacina, mas estou tomando cuidado, não tem outro jeito. Minha filha e meus netos de vez em quando vêm e passam pela rua, eu fico na janela e a gente fica falando pelo telefone. Eu até estava com reforma na minha casa praticamente combinada, e eu ia ficar esse período no Guarujá (SP), onde tenho apartamento. Mas agora vamos esperar mais um pouquinho.
E, no começo da pandemia, eu estava até animada, viu? Arrumei coisas, arrumei arquivos, joguei coisas fora, arrumei as gavetas todas da casa, arrumei armários, eu estava animadíssima. Eu escrevi até um livro novo.
E sobre o que é o livro?
Ele se chama "O Grande Livro dos Macacos". É sobre macacos. Eu vou contando como são os macacos, falo de gracinhas sobre os macacos, provérbios sobre macacos, e depois eu conto como eles têm um DNA parecido com o do homem. Daí falo que as pessoas não gostam de ser parecidas com o macaco — mas a gente não quer ser parecido nem com jacaré nem com girafa nem com hipopótamo. E, a partir disso, eu falo um pouco sobre a evolução.
Como é produzir neste momento?
Ah, hoje eu não tenho mais que produzir. Eu faço se eu tiver uma ideia boa, mas eu nunca fui muito disciplinada, sabe? Eu sou meio... faço as coisas na hora que eu quero. Se tiver uma ideia muito boa, faço um novo livro. Eu sou muito preguiçosa.
Eu só sou esperta para escrever. Eu trabalhei muito na minha vida, trabalhei em empresa por 30 anos e escrevi 200 livros. Mas minhas características são de preguiça. Eu gosto de uma cama. E eu gosto muito de ler, né? Eu acho que isso ajuda muito a gente
O que você tem lido?
Eu tenho a vista um pouco fraca. Aí tenho uma irmã [Rilda] que me telefona todo dia para ler para mim. Ela lê uma hora por dia. Outro dia, ela fez uma foto com todos os livros que ela leu, dava umas 4.000 páginas. Nós lemos "Guerra e Paz", "Os Irmãos Karamazov", nós lemos o Obama, o livro novo dele ["Uma Terra Prometida"]. Lemos uns 12 livros, foi ótimo.
E livros para crianças? A produção e o público infantil estão diferentes?
Eu não tenho lido muitos livros infantis, não tenho recebido nada. Mas eu acho que as crianças não mudaram não. "Marcelo Marmelo Martelo" tem 50 anos e ainda hoje ele é o meu livro que mais vende.
A gente mudou a maneira de tratar as crianças. Antigamente as crianças eram postas um pouco de lado, ninguém conversava com elas. Agora, a gente conversa, pergunta o que ela acha. Então elas estão mais amigas dos pais. Acho que houve um progresso nesse sentido. Mas mudar, mudar mesmo, isso não mudaram não
Você acha que fenômenos estrangeiros, como "Harry Potter", mudaram o mercado nacional?
Acho que não, pelo contrário. A gente viu que as crianças têm apetite para ler livro grande. E gostaram muito desse livro. Eu até fui criticada porque falei que não é literatura, é um livro de entretenimento excelente. Agora, quanto mais as pessoas leem, mais as pessoas leem. Então o fato de ter lido o "Harry Potter" só pode ter aberto portas.
Os seus livros também abrem muitas portas, trazem um espírito questionador para as crianças. Como você vê esse espaço para a reflexão na literatura infantil?
Olha, eu acho que o autor não pensa nessas coisas. O autor escreve aquilo que ele quer escrever, que ele está querendo dizer. E acontece que, quando a gente quer dizer uma coisa que desperta a inteligência, a curiosidade, aí sai do livro. A gente não planeja não.
Hoje, com todo o contexto político e a crise sanitária, estamos num momento de contestar mais?
Sempre é um momento de pensar, né? Eu acho que hoje nós estamos num momento terrível. Cada dia é um momento terrível, é ou não é? Todo dia, todo dia tem uma besteira desse governo ou tem uma coisa que nem é besteira — eles sabem muito bem o que estão fazendo. Eu acho que... eu estou pensando sobre o que aconteceu todo dia. Eu fico muito exaltada.
Você sabe que eu cheguei a escrever uma história sobre um rei muito mandão e que sabia de tudo. Mas, na verdade, eram os filhos que mandavam nele — ele era um boneco pendurado nos filhos. E os filhos eram três bonecos pendurados na mão de um outro homem: de um idiota. Mas eu não tive coragem de publicar. Eu acho esse povo do governo muito cruel, muito ruim. Eu tenho medo desse povo do Bolsonaro
Você trabalhou muito com educação, depois foi diretora da revista "Recreio" e então virou escritora. Como mulher, enfrentou dificuldades na sua trajetória?
Você sabe, eu tive um pai muito maravilhoso, conversava muito conosco, contava histórias. Fui muito bem tratada. Depois casei com um homem ótimo, que gostava de mim e eu gostava dele. Fui muito feliz.
Mas eu vejo anos e anos em que os homens maltratam as mulheres, é uma coisa que me incomoda muito. Porque eu vejo a violência contra a mulher, violência física, violência psicológica, violência no trabalho, é terrível. Eu sou muito feminista
Na profissão, eu via sim sexismo quando eu trabalhei na editora Abril. Eu cheguei a um ponto de direção, e dali uma mulher não passava. Mas eu não senti mesmo [o preconceito], porque eu estava muito contente com a minha posição, eu era diretora de grupo e eu era muito boa no meu trabalho. Mas eu reparava nisso. Hoje eu percebo uma mudança. Pouca, mas percebo. Uma mudança no tratamento com as mulheres, no tratamento com os negros. Mudou um pouco e está mudando ainda.
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