Como denúncia de estupro de atriz argentina iniciou MeToo na América Latina
Quando denunciou por estupro o ator Juan Darthés, 56, a argentina Thelma Fardin, 28, não estava sozinha — e isso fez toda a diferença. No fim da tarde de 11 de dezembro de 2018, o relato da atriz sobre a violência sexual que sofreu foi divulgado em uma entrevista coletiva convocada pelo Coletivo Atrizes Argentinas, uma agrupação que conta hoje com mais de 200 integrantes de diferentes idades.
Movimentos feministas já ganhavam espaço no debate político argentino desde 2015, quando aconteceu a primeira marcha do Ni Una Menos (Nenhuma a Menos), que pede o fim do feminicídio. Em 2018, o Congresso do país debateu um projeto de lei para legalizar o aborto —que terminou rejeitado pelo Senado, mas deixou como legado o fortalecimento e a multiplicação de coletivos feministas articulados em torno ao direito à interrupção voluntária da gestação.
Em março de 2018, nove meses antes da denúncia pública de Fardin, o Coletivo de Atrizes Argentinas se organizou para dar visibilidade à demanda por uma lei que garantisse o aborto legal. "Falar de aborto em uma sociedade que naturaliza atitudes machistas nos uniu muito e articulou muitas redes. Percebemos que todos os caminhos conduziam ao patriarcado", diz a Universa Laura Azcurra, uma das integrantes da organização multipartidária e sem hierarquia.
Depois da também atriz Calu Rivero, companheira de elenco de Darthés na novela "Dulce Amor" (Doce Amor), acusá-lo de assédio, Fardin decidiu procurar o movimento de atrizes para contar que havia sido estuprada pelo ator em 2009, durante uma turnê na Nicarágua do programa infantil no qual os dois atuavam. Na época, a atriz tinha 16 anos e Darthés, 45.
O Coletivo de Atrizes Argentinas organizou uma vaquinha para que Fardin pudesse viajar à Nicarágua para fazer a denúncia formal contra o ex-colega de elenco e só depois decidiu como seria a divulgação do caso. Decidiram que o relato da atriz seria gravado em vídeo para que a história ficasse registrada e ela não precisasse se revitimizar ao repeti-la outras vezes.
"O impacto foi tão grande que, já no dia seguinte, muitas mulheres nos paravam nas ruas, contavam histórias de abusos que haviam sofrido muitos anos antes e nos agradeciam. Quando a Thelma falou, deu voz a muitas de nós", lembra Azcurra.
Em 2019, o Ministério Público nicaraguense acusou Darthés de estupro. A Justiça da Nicarágua também pediu sua extradição e a Interpol emitiu um alerta vermelho contra o ator, cujo nome verdadeiro é Juan Rafael Pacífico Dabul.
Darthés está hoje foragido no Brasil — onde nasceu — para evitar responder ao processo, já que o país não extradita nacionais. No entanto, assim como o Ministério Público argentino colaborou com seu par nicaraguense na produção de provas, o Ministério Público Federal de São Paulo também apresentou denúncia contra Darthés, uma vez que o Código Penal do Brasil prevê que crimes praticados por brasileiros no estrangeiro estão sujeitos à legislação nacional. A Justiça de São Paulo não tem prazo para determinar sobre o caso, que corre em sigilo.
"Caso de Thelma incentivou denúncias coletivas no meio artístico"
O poder de identificação da denúncia de Thelma Fardin cruzou fronteiras e virou referência para coletivos de atrizes em outros países da América Latina. No Brasil, a documentarista Luciana Sérvulo fundou o movimento Respeito em Cena a partir da própria experiência com violência psicológica no meio artístico.
A violência psicológica é uma inimiga invisível e ao mesmo tempo é a mais praticada contra mulheres. No meio artístico, a violência psicológica e o assédio moral acontecem em linhas hierárquicas, a partir da relação de poder com pessoas que têm capital artístico e financeiro. A Respeito em Cena entra para desmontar a impunidade e essa aura de impecabilidade, intocabilidade, inclusive de artistas que têm uma imagem muito positiva e são considerados gênios
Sérvulo reconhece que a denúncia da atriz argentina é um divisor de águas na forma de organização e de busca por justiça em casos similares. "O caso da Thelma é muito simbólico e aglutinador das nossas demandas e das nossas lutas justamente porque reúne três países da América Latina. Também foi um marco no sentido de inaugurar uma nova forma de denúncia, de maneira coletiva. Nós nunca mais estaremos sozinhas."
A fundadora da Respeito em Cena também convocou a Campanha Latino-americana contra a Violência Psicológica no Meio Artístico, da qual já participam coletivos de 12 países da região, entre eles o de Atrizes Argentinas e a RACh (Rede de Atrizes do Chile), também fundada em 2018 e engajada na luta pela legalização do aborto.
O coletivo do país andino surgiu após acusações de abuso sexual contra o diretor de cinema Nicolas López e de assédio trabalhista contra o diretor de TV Herval Abreu. López aguarda julgamento depois de ser acusado pelo Ministério Público de estupro, abuso sexual e ultraje público aos bons costumes. Já no caso de Herval Abreu, a Promotoria chilena decidiu não apresentar denúncias.
"Nesse contexto, surge a necessidade de conversar entre mulheres, de fazer encontros com uma perspectiva feminista, em espaços diferentes das esferas sindicais tradicionais", conta a atriz e dramaturga chilena Andrea Gutiérrez, integrante da RACh e candidata à Assembleia Constituinte para elaborar a primeira Constituição sob perspectiva de gênero no Chile.
"A coragem da Thelma e o acompanhamento do coletivo permitiram que esse caso não se transformasse no de uma vítima individualizada, mas sim em uma causa política coletiva, uma voz amplificada de algo que muitas de nós experimentamos. Nesse sentido, foi relevante para toda a região", destaca Gutiérrez.
Para a atriz chilena, as mobilizações feministas em torno do aborto legal e do Ni Una Menos na América Latina prepararam terreno para a construção de redes entre diferentes países.
O #MeToo teve impacto midiático e impulsionou denúncias aqui também; o movimento fala de um 'Eu também' que ainda é uma experiência individual. Na América Latina, nós falamos de 'nenhuma a menos', nenhuma menos entre nós. E isso também tem a ver com a articulação de um feminismo popular e coletivo
Para Luciana Sérvulo, as reuniões da Campanha Latino-Americana deixaram como lição que as experiências vividas em diferentes países e contextos são, no fundo, muito similares.
"Quando cada uma relata suas histórias, percebemos que, apesar das singularidades de cada país, a situação da mulher em relação à violência de gênero é igual em todos os países da América Latina, inclusive no que diz respeito à reação da sociedade. No Panamá, no Chile, no Brasil, na Venezuela, na Colômbia, surge sempre aquele tipo de pergunta: 'Que horas foi isso?'; 'Você estava sozinha na rua?', 'Que roupa estava vestindo?'. O que nos aproxima é essa similaridade na catástrofe", afirma a documentarista.
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