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"Criei uma linha de bonecas negras e brinquedos antirracistas"

Geo Nunes criou uma linha de brinquedos antirracistas - Cristóbal Fraga
Geo Nunes criou uma linha de brinquedos antirracistas Imagem: Cristóbal Fraga

Geo Nunes em depoimento a Fernando Barros

Colaboração para Universa

13/05/2021 04h00

"Tenho 32 anos, sou de uma cidade bem pequena chamada Tucano, localizada no sertão da Bahia, e vim morar em Salvador para estudar. Na capital, me formei em design de produto e trabalhei durante muitos anos em agências publicitárias nas áreas de web e design gráfico.

No final de 2015, eu ia participar de uma ação social e precisava comprar bonecas para dar a crianças. Como em sua maioria elas eram negras, eu queria bonecas que as representassem, mas não encontrei nas lojas. Pensei "se aqui em Salvador, onde temos mais de 80% da população negra, não há bonecas negras, onde mais encontraremos?".

Aquilo me incomodou e decidi eu mesma fazer as bonecas, costurando-as com uma máquina de costura simples que tinha em casa para fazer a bainha das minhas roupas. Eu nunca havia costurado uma boneca antes nem feito curso de costura, então fiz tudo como autodidata, vendo vídeos no Youtube, pegando moldes na internet e testando.

Assim, a Amora Brinquedos nasceu como um projeto de doação de bonecas. Um dia, me perguntaram como eu iria manter a iniciativa se ficasse desempregada e isso me levou a transformar o que era apenas um projeto pessoal em um negócio. No entanto, além do lucro financeiro, busquei continuar com o lucro social. Por isso, a cada boneca que vendemos, outro brinquedo é doado para escolas públicas.

Pesquisei muito para desenvolver as bonecas e outros brinquedos antirracistas

Desde o início, foram muitos testes até desenvolver uma boneca Amora com modelagem exclusiva, porque o que a gente desenha no papel nunca é igual ao protótipo final, depois de costurado e preenchido com enchimento. O 2D é muito diferente do 3D, mas eu acredito que os anos estudando Design de Produto me proporcionaram um olhar mais acurado sobre projeto, prototipagem, materiais e, sobretudo, pesquisa.

Empresa de Geo criou uma linha de giz de cera em vários tons pele, para desconstruir o conceito racista que diz que o lápis cor da pele é apenas o rosinha. - Cristóbal Fraga - Cristóbal Fraga
Empresa de Geo criou uma linha de giz de cera em vários tons pele.
Imagem: Cristóbal Fraga

Eu sou muito curiosa e insistente. Quando eu quero algo, pesquiso e testo milhares de materiais até ficar satisfeita. Foi assim com o cabelo das bonecas, por exemplo. No início, os cabelos eram feitos de feltro, mas esse é um material que, com o tempo, se desgasta e dá um aspecto de "usado".

Eu queria uma textura para o cabelo das bonecas que se aproximasse do cabelo crespo, que fosse macia como ele é. Depois de tanto pesquisar e testar, fiquei bem satisfeita com o material que encontrei. Já as roupas são confeccionadas com tecidos africanos, que, além de contarem uma história, são bastante coloridos e conversam muito bem com o universo infantil.

Tudo começou com as bonecas, mas eu queria oferecer uma gama de brinquedos onde as crianças pudessem se enxergar, apresentando soluções lúdicas para a construção dessa identidade, além de também questionar o racismo porque os brinquedos Amora não são apenas para crianças negras, mas para todas as crianças

Por isso, pesquiso referências de brinquedos bacanas, faço curadoria de materiais e fornecedores e estou sempre aberta a novidades. Hoje, além das bonecas e bonecos, temos quebra-cabeças de papel, quebra-cabeças de madeira, jogos digitais, livros de colorir e também o Giz Amora Tons de Pele, para desconstruir o conceito racista aprendido na infância que diz que o lápis cor da pele é apenas aquele rosinha.

Faço ações em escolas públicas e já recebi alguns prêmios

Atualmente, junto comigo, trabalha uma equipe composta inteiramente por mulheres: são duas costureiras, uma social media, que me ajuda a pensar o planejamento de tudo que entra nas redes sociais, além de uma fotógrafa e uma arte-educadora, que atuam nos eventos que promovemos.

Em 2019, graças a um matchfunding, conseguimos impactar cerca de 4.000 crianças, realizando 12 eventos em 12 escolas públicas de Salvador e região metropolitana. Em cada escola, deixamos diversas bonecas para que sirvam de materiais lúdicos pedagógicos.

Chamados de "Eu brinco, Eu existo!", esses eventos são gratuitos e, para nos receber, a escola precisa se cadastrar através de nosso site e atender a dois requisitos mínimos, que são: já praticar, de forma comprovada, uma educação contra o racismo e atender a crianças da primeira infância.

Nessas ocasiões, a gente leva a "Casa mágica da Amora" com nossa contadora de histórias vestida igualzinha à boneca e ela fala sobre quilombos, ancestrais, bonecas abayomis e muito mais coisas sobre nossa história, cultura africana e afrobrasileira.

Nosso trabalho vem sendo reconhecido e isso mostra que estamos no caminho certo. Em 2017, a Amora recebeu o "Prêmio Jovens Empreendedores Sociais", que nos trouxe mentorias e especializações necessárias para a modelagem do nosso negócio. Tivemos também menção honrosa do "Prêmio Here for Good", concedida a empresas que estão realizando um trabalho para o bem comum.

Quero ajudar a fortalecer a autoestima das crianças e mostrar que elas podem ser o que quiserem

De uma forma muito simples e direta, por meio dos brinquedos, eu pretendo construir uma educação antirracista. Como? Conversando com a criança dentro do universo lúdico dela. Através de uma boneca negra, ou de outro brinquedo da Amora, mostro que ela também pode ser uma sereia, que as sereias não são somente aquelas com cabelos ruivos e que elas podem inclusive usar turbantes.

É possível também usar dreadlocks cor de rosa ou cabelo black power, sonhar em ser juíza, estilista ou trabalhar na Nasa, assim como as personagens da Turma da Amora. Da mesma forma que o racismo atua, através do que não é dito, mostro para as crianças que elas podem ser o que quiserem ser. Eu não preciso necessariamente verbalizar: eu só preciso mostrar uma boneca, um personagem que se parece com elas e é tudo isso.

Mas diferentemente do racismo em nosso país, que mora em não-lugares e vive no que não é dito, eu faço questão de verbalizar para as crianças que recebem nossos brinquedos que elas são maravilhosas. São reis e rainhas! Digo para que elas jamais se esqueçam disso. Precisamos criar crianças conscientes e potentes, com autoestima fortalecida, para que estejam preparadas a confrontar o status quo do mundo racista, machista e misógino no qual ainda vivemos." Geo Nunes, 32 anos, é designer de produto, criou a Amora Brinquedos e mora em Salvador.