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Candidata à Constituinte no Chile teve bebê arrancado do útero na ditadura

A ativista chilena Haydee Oberreuter, que foi torturada na ditadura de Pinochet, é uma das candidata à eleição da Constituinte no Chile neste sábado (15) - José Domingo Cortinez/Divulgação
A ativista chilena Haydee Oberreuter, que foi torturada na ditadura de Pinochet, é uma das candidata à eleição da Constituinte no Chile neste sábado (15) Imagem: José Domingo Cortinez/Divulgação

Yara Guerra

Colaboração para Universa

15/05/2021 04h00

"Lutadora social de ontem e hoje": é assim que Haydee Oberreuter, 67, se define. Candidata à Assembleia Constituinte do Chile, cujas eleições acontecem neste sábado (15) e domingo (16), a dirigente social dedicou a vida à construção de justiça, verdade, memória e reparação em seu país.

Como muitos jovens estudantes à sua época, a Haydee de 21 anos carregava o sonho de mudar o mundo, o que a levou à liderança universitária e à militância política. Por isso, não demorou para que ela se somasse ao número atroz de detidos e torturados pelo Estado nos primeiros anos da ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990).

Em 1975, então grávida de quatro meses de seu segundo filho, ela foi presa e torturada pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Em determinado momento, os torturadores decidiram fazer uma "autópsia" enfiando uma faca na cicatriz de sua cesárea, arrancando o feto ainda com vida e anunciando que o mundo perdia "mais um terrorista". Essa história terrível é contada no documentário "Haydee e o Peixe Voador" (2019), que foi exibido no Brasil pelo Canal Curta.

Para a ativista, o feminismo é um movimento emancipatório para a humanidade - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Para a ativista, o feminismo é um movimento emancipatório para a humanidade
Imagem: Arquivo pessoal

Hoje, ela que nunca deixou de lutar por um país mais justo e digno, quer ajudar a soterrar uma das maiores heranças da ditadura chilena, a Constituição de 1981. Por isso decidiu se candidatar à Constituinte que redigirá a nova Carta Magna do Chile e que será histórica: pela primeira vez, o número de integrantes homens e mulheres será igual, o que levará a uma legislação sob a perspectiva de gênero.

Em conversa com Universa por videochamada, Haydee falou sobre as razões que a levaram a se candidatar, a importância do feminismo na Constituição e sobre o adeus aos símbolos da ditadura chilena.

Universa - Por que você se candidatou à Assembleia Constituinte?

Haydee Oberreuter - Tudo começou porque nosso povo estava farto e foi às ruas em 2019 para exigir justiça, equidade e respeito. E as classes políticas tentaram guardar tudo isso em uma gaveta chamada "Acordo pela Paz e uma Nova Constituição". Não gostávamos disso, mas concluímos que precisávamos participar ativamente para seguir insistindo nas questões de direitos humanos.

Também tem a razão do coração. Nos anos 80, tivemos amigos e familiares arrancados de nós. Nós mesmos estamos vivos por um milagre. Portanto, a imposição daquela Constituição com sangue e fogo é o que também nos motiva a retirá-la não de forma violenta, como a impuseram, mas de forma profundamente participativa.

Por que a sua candidatura valoriza o feminismo?

Venho da militância da esquerda. Não foi uma coisa fácil. Para ter o respeito do interlocutor, aprendi a masculinizar a forma de me expressar. A política é um espaço onde o feminismo ainda tem muito a avançar. Vamos fazer a primeira Convenção Constituinte paritária da história. Acho que as minhas avós, que lutavam pelo direito de voto, dançam de alegria onde quer que estejam.

Como o feminismo pode beneficiar a nova Constituição?

Pela primeira vez, a Assembleia Constituinte do Chile será paritária, com número igual de homens e mulheres - Getty Images - Getty Images
Pela primeira vez, a Assembleia Constituinte do Chile será paritária, com número igual de homens e mulheres
Imagem: Getty Images

Acredito que o feminismo é um avanço emancipatório muito interessante para a humanidade. Somos metade da população do planeta, representamos uma força criadora e uma forma de ver o mundo que deve ser considerada em pé de igualdade. Hoje existem graves questões de desigualdade associadas ao salário, ao trabalho e à autonomia em relação ao corpo. Essa soberania não deve ser de ninguém senão nossa. Também acho que o feminismo tem uma virtude adicional pensando na oposição ao modelo patriarcal. Pode abrir a mente e o coração às diversidades e ser uma contribuição muito valiosa para a sociedade.

As suas aspirações enquanto militante influíram de alguma forma em suas propostas?

Sim, por causa da minha vocação de ação comunitária e de romper as margens do individualismo que nos conduziu a este modelo [econômico]. Nosso olhar é de colaboração. Podemos escrever a Constituição mais bonita do planeta, mas não teremos certeza de que ela realmente irá se materializar no dia a dia se não houver, do outro lado, organizações sociais.

Promover uma sociedade articulada é um desafio monumental, porque fomos ensinados a nos defender sozinhos e sermos meritocráticos. Ao final, estaremos vendo em cada vizinho um inimigo. Mas se temos duas mãos é para nos segurarmos uns aos outros e para nos fortalecer.

Uma nova Constituição vai sanar os problemas levantados nas manifestações de 2019?

Sim e não. A Constituição, por definição, é uma estrutura. É preciso construir todo um tecido legislativo que garanta que as declarações que estão nesta Constituição se efetivem. Então, é responsabilidade do governo avançar na resolução das demandas sociais das manifestações.

Mas, sem dúvida, nós que chegamos ao debate constituinte temos a obrigação de garantir que aquilo que o povo pede na rua seja garantido pelas normas constitucionais

Quem apoia a sua candidatura?

Protestos na Praça Baquedano, em Santiago, Chile - Susana Hidalgo/Reprodução Instagram @su_hidalgo - Susana Hidalgo/Reprodução Instagram @su_hidalgo
Em 2019, os chilenos tomaram as ruas de Santiago para protestar contra a desigualdade no país; o resultado foi a convocação da nova Assembleia Constituinte
Imagem: Susana Hidalgo/Reprodução Instagram @su_hidalgo

Forças dos direitos humanos muito diversas. Uma coisa muito bonita que aconteceu é que, junto com as manifestações de 2019, os chilenos forçados a se exilar nos anos 70 e os jovens de hoje que estudam fora se organizaram em uma série de movimentos. Eles decidiram que, como não vão poder votar nesta eleição, alguns dos candidatos serão sua voz na Constituinte. A ditadura nos separou. E, com o propósito de acabar com a Constituição [de 1981], agora esses chilenos voltam e dizem: 'Assuma o comando. Seja a nossa voz'. Esse é um dos apoios mais valiosos para mim.

Uma das suas propostas é a dissolução dos Carabineros [polícia chilena], que estiveram por trás de muitos crimes durante o regime militar e nas manifestações de 2019. Por que é importante enterrar esses símbolos nocivos do passado?

Acredito que é a garantia de que podemos construir uma sociedade democrática e participativa que respeite os direitos humanos. Aqui tivemos 17 anos de ditadura, mas foram 30 anos de continuidade do modelo que ela deixou para trás. Isso se reflete nas Forças Armadas e policiais. A lógica do inimigo interno está plenamente instalada.

Outro ponto é que, após o fim da ditadura, as Forças Armadas, sob a ameaça de retomar o poder, conquistaram uma autonomia que conservam até hoje. Os Carabineros, em particular, se tornaram uma força militar que ataca os cidadãos em vez de entender que a manifestação é um direito. Se não fizermos o que precisa ser feito, eles continuarão agindo como durante a ditadura.

Por que dissolver e não reformar?

Desde o início, os Carabineros são uma instituição que opera matando camponeses, indígenas e jovens, sempre os mais pobres. Como no Brasil, a nossa polícia acabou se envolvendo com tráfico de drogas e venda de armas. Em vez de garantir a segurança do cidadão, estão fazendo o contrário. Portanto, é uma situação que não resiste. Se queremos ordem e segurança, não se trata de reformá-los. Eles devem deixar de existir e outros tipos de polícias devem ser criadas.

Como garantir que uma nova polícia não repita esses erros?

Acho que há várias formas, começando com uma mudança propriamente institucional, dizendo "isso deixa de existir e isso começa a existir". Talvez demore mais de uma década, dependendo de quem for colocado no comando. Devem ser pessoas de grande caráter, mas, sobretudo, com uma estrutura de valores em que a sociedade esteja no centro. As Forças Armadas se devem à sociedade, é ela quem lhes dá o poder.

Não é assim que funciona?

É um dos pecados que herdamos da ditadura. As Forças Armadas se sentiam acima da sociedade e tomavam "as melhores decisões" para todos nós, que nos tornamos crianças incapazes de saber o que queríamos. Conquistaram, pelas armas, um poder que ninguém havia dado. E até hoje continua assim. Por definição, as Forças Armadas não devem ser deliberativas, mas os generais do mais alto comando têm dado a sua opinião quanto à política. É fundamental entender que as Forças Armadas são submissas à sociedade e que os conflitos podem ser resolvidos através do diálogo.