Da testa ao "pé de Cinderela": como novas cirurgias impactam a autoestima
Líder no número de cirurgias plásticas no mundo, o Brasil é um país em que mulheres remodelam o corpo em busca da aparência "perfeita". O implante de silicone nos seios e a lipoaspiração são os procedimentos mais procurados - segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), representavam 19% e 16% do total de 1,8 milhão de procedimentos em 2018 - mas, há outras cirurgias que provam como é possível fazer modificações, literalmente, da cabeça aos pés.
A novidade agora são a frontoplastia, conhecida como cirurgia da testa e lifting de testa, e a osteotomia de falange, para reduzir o tamanho dos dedos dos pés, são intervenções corporais que ganharam projeção nas redes sociais há pelo menos um ano. No Youtube, há vídeos com relatos de mulheres que reduziram a testa ao operar a região; no Instagram, clínicas ortopédicas dos Estados Unidos e alguns profissionais do Brasil anunciam o "procedimento Cinderela" como uma chance para quem quer mudar a aparência dos pés.
Enquanto a primeira pode custar de R$ 15 mil a R$ 25 mil, a modificação nos pés pode fazer com que o paciente gaste de R$ 10 mil a R$ 40 mil, dependendo das necessidades na cirurgia.
Segundo as médicas especialistas ouvidas por Universa, a busca por essas alterações em partes tão específicas do corpo é feita majoritariamente por mulheres. O que esse filão de procedimentos diz sobre as exigências de beleza que recaem sobre as brasileiras?
Cirurgias para testa e pés e a autoestima feminina
Entenda a frontoplastia
Há 30 anos atuando na área, a cirurgiã plástica Vera Cardim, de São Paulo, explica que as operações faciais são destinadas, a princípio, a pessoas com deformidades no rosto, causadas por fraturas e tumores ou para crianças que nascem com disformidade na face, entre outras necessidades.
Entretanto, há mais três grupos de pacientes que se valem desse tipo de procedimento: o de mulheres trans, que buscam alterar o formato da testa em um processo de "feminilização" do rosto; o de mulheres preocupadas com os efeitos do envelhecimento dessa região em busca do "lifting facial" e aqueles que buscam a cirurgia para reduzir o tamanho da testa — é feita uma incisão próxima ao couro cabeludo do paciente para antecipá-lo.
Com mais gente postando nas redes sociais sobre o tema, a curiosidade aumenta. "Quando cai na internet, as pessoas ficam cegas em cumprir os padrões. Estamos em uma fase em que a 'lei' é que a região frontal seja redondinha, por exemplo", analisa a cirurgiã. "Há uma cobrança de perfeição de harmonia facial, com maçã do rosto e mandíbula projetada, e parece que a mulher não tem mais o direito de ser ela mesma", argumenta.
Por enquanto, entretanto, o interesse ainda não chegou a elevar o número de pacientes com esse propósito nos consultórios; a SBCP explica que o procedimento não aparece como destacado no ranking de tipos de cirurgias plásticas feitas no Brasil. A médica confirma a tendência dos dados. "Não é muito comum passar pela minha mão esse tipo de caso. Ainda não virou moda".
Como é feita a cirurgia
De acordo com Vera, o procedimento de frontoplastia serve para atenuar os efeitos que o envelhecimento causa na aparência do rosto do paciente, minimizando vincos e elevando as sobrancelhas. Com o avanço da idade, pode haver perda de gordura e massa óssea no rosto, além da degradação do colágeno, o que acarreta a perda de volume das maçãs e alterações anatômicas em outros pontos do rosto.
"O procedimento pode ser feito via pálpebra ou acima do nariz. É possível ainda uma abordagem pela região do cabelo. O objetivo é remodelar esses ossos", conta. O objetivo é reaver a antiga harmonia do rosto.
A cirurgiã diz que as contraindicações estão relacionadas ao quadro clínico de cada paciente. Por isso, é importante que se procure um médico especializado e confiável para que o resultado seja bem-sucedido e para que os riscos sejam informados antes do procedimento. É possível rastrear os profissionais verificados pela sociedade competente por meio do número de inscrição no Conselho Federal de Medicina.
Os "pés de Cinderela"
Imagine a história de vida de uma mulher que, para conseguir se casar, precisa fazer com que seu delicado pé se encaixe em um sapatinho de cristal, visto como um símbolo de feminilidade pela sociedade da época. Provavelmente, o enredo já está aí na sua cabeça: essa é a narrativa de Cinderela, a princesa que conquista o príncipe no baile, mas só tem a vida transformada mesmo quando prova que o acessório comporta seu pequeno pé.
Na vida real, cirurgiões e ortopedistas usam o conto de fadas para dar nome a um procedimento de modificação nos pés: a osteotomia (no dicionário, dissecção cirúrgica de um osso para corrigir deformidade ou para interferir em lesão localizada em área protegida por um osso) de falange, que, nas redes sociais e nos sites das clínicas ortopédicas ganha o nome de "procedimento Cinderela".
Popularizada há pelo menos dez anos em clínicas ortopédicas nos Estados Unidos e no Reino Unido, a cirurgia, na verdade, não faz com que os pés diminuam de tamanho, como o nome pode nos fazer supor. A técnica é de redução do tamanho dos dedos dos pés, explica a ortopedista e cirurgiã de pé e tornozelo Cibele Ressio, que faz atendimentos desse tipo há pelo menos 30 anos.
Com a maioria feminina entre os pacientes, "95% dos que atendo são mulheres de 20 a 40 anos", a médica comenta que quem busca a cirurgia geralmente tem queixas sobre calosidades, dores ou unhas encravadas que surgem com o uso de sapatos apertados. A questão revela um ponto sensível a autoestima das mulheres: "Por não quererem comprar um número de sapato maior, por vergonha, elas ficam usando com o dedo do pé dobrado", revela.
Como é feita a cirurgia
Cibele explica que a osteotomia de falange consiste em tirar um feixe da falange do dedo para reduzi-lo. Por vezes, é preciso colocar um material ortopédico para consolidar a intervenção. De fato, o pé não é reduzido, mas o paciente pode ver alteração no número de sapato que calça por conta da operação. Joanetes, protuberâncias que crescem na articulação do primeiro dedo do pé por atrito contra calçados apertados, também podem ser retirados no procedimento.
"Fiz a cirurgia de uma adolescente no ano passado que nunca ia à praia porque achava que tinha dedos grandes e por conta dos joanetes. Ela ficou muito feliz", relata.
A ortopedista alerta que há contraindicação para quem tem artrite reumatoide e doenças vasculares crônicas. Entre os riscos, lista a possibilidade de infecção, como em qualquer outro procedimento cirúrgico, e de não-consolidação dos ossos, o que pode exigir uma nova operação corretiva.
Os efeitos na imagem do corpo feminino
Pesquisadora do comportamento, autoestima e envelhecimento femininos há mais de três décadas, a antropóloga Mirian Goldenberg sinaliza que o fato do Brasil ser celeiro da popularização das cirurgias plásticas estéticas tem a ver com a influência dos modelos de beleza importados dos Estados Unidos e com a ideia de que, para se chegar a um "ideal", todo o corpo pode ser moldável.
Para nós, brasileiras, e em outras culturas também, o corpo é uma forma de poder. Só que isso aprisiona as mulheres. Começou com os peitos, a cintura, a lipoaspiração, o nariz e foi chegando a outros lugares que as mulheres sentem que não são tão 'perfeitas' como gostariam de ser.
Ao entrar na rede da pressão estética, o corpo feminino, sejam partes como os pés ou a testa, se torna um elemento capaz de ser "aperfeiçoado". "Há mulheres que dizem que querem fazer cirurgia plástica, 'só não sabem onde'", relata.
Para ela, existem elementos culturais muito enraizados sobre a imagem da mulher em relação à existência dessas cirurgias, especialmente a feita nos pés. "O pé é uma área de sensualidade, de feminilidade. E, no Brasil, é mais importante ainda porque os exibimos nas sandálias, com esmaltes, no salto alto", argumenta.
Já as alterações na testa, pondera a antropóloga, também podem se associar ao fato de que estamos cada vez mais fazendo fotos de nossos próprios rostos, em selfies e em participações de encontros virtuais. "Antes, para sair às ruas, a pessoa simplesmente colocaria uma franja na frente. Na internet, estamos mais expostas", diz.
A perspectiva, no entanto, também pode ser de reavaliação desses "padrões de beleza", conclui Mirian. "Para contrastar, temos também movimentos e discursos de liberdade feminina. Só que os valores, como os da 'mulher boneca', 'Cinderela' e com docilidade demoram a mudar porque estão enraizados dentro de nós", finaliza.
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