Elas têm vulva com lábios grandes: "Médica sugeriu que eu fizesse cirurgia"
Em regiões da África Austral, principalmente no norte de Moçambique, mulheres com lábios vaginais alongados são celebradas entre os seus povos. Para algumas civilizações, quanto maior for o lábio interno de uma vulva, maior será o poder, a força e a saúde de uma mulher.
Cenário contrário é o que vivemos no Brasil, país que lidera o ranking mundial de cirurgias íntimas. Segundo o último relatório da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS), em 2017, cerca de 21 mil brasileiras passaram por uma ninfoplastia — operação que consiste na redução dos lábios internos da vagina que, por causa de uma hipertrofia, crescem mais do que os lábios externos.
Mesmo que grande parte dessas cirurgias sejam feitas por questões funcionais (como redução de desconforto na hora do sexo), ainda hoje muitas pacientes buscam o procedimento para adequar a própria vulva ao padrão que a sociedade ocidental considera como uma 'pepeca bonitinha' — a imagem consolidada pela pornografia de uma vulva pequena, rosada, sem pelos e com lábios internos pequenos e externos maiores.
São vários os procedimentos para a região íntima: laser, "vontouring" (cirurgia para definir o contorno), rejuvenescimento, labioplastia, clitoroplastia... Se, de um lado, a sociedade busca padronizar as vulvas, de outro, mulheres se libertam de estereótipos, orgulham-se dos próprios corpos e encontram ainda mais prazer através do autoconhecimento e lutam contra uma sociedade que é problemática até na hora de nomear as partes do corpo feminino. As expressões lábios pequenos e grandes não contemplam a variedade do universo daqueles que tem vagina.
"Uma médica sentiu nojo da minha vulva e sugeriu que eu fizesse a operação"
Para Caroline Amanda, 29 anos, terapeuta menstrual e criadora da página Yoni das Pretas, ter os lábios internos maiores do que os externos não era um "problema". Até que, aos 18, em uma consulta de rotina, uma médica ginecologista sugeriu que ela devia, por questões estéticas, realizar uma cirurgia de ninfoplastia. "Ela olhou para a minha vulva, reprovou o que viu e mal tocou na minha vagina", conta Carol.
A médica começou a me questionar, perguntar se o fato dos meus lábios internos serem maiores não causava dor ou incomodo. Ela insistiu para que eu fizesse a cirurgia e eu respondi que não tinha nenhum problema, pelo contrário, achava confortável. Fiquei assustada e nunca mais voltei
Foi assim que a terapeuta se deu conta que não atendia às expectativas do que a sociedade julgava como padrão em relação a sua vulva.
A contadora Taynara Santana, 24, também enfrentou o mesmo constrangimento médico vivenciado por Carol: "A primeira vez que fui em uma ginecologista ela me perguntou se eu tinha vontade de fazer a cirurgia de ninfoplastia para 'ficar bonitinha'. E eu falei que não, que minha vulva nunca me incomodou, nem causou dor... Enfim, nunca mais voltei na médica", diz.
Os comentários ofensivos feitos às duas vieram ainda de outras mulheres.
Uma vez uma depiladora elogiou uma amiga dizendo que ela tinha uma pepeca bonitinha, 'porque tinha vulvas feias, com tudo para fora'. Claro que eu nunca fui nessa profissional. Esse tipo de comentário me deixou insegura durante muito tempo
Carol revela ter sofrido um episódio de violência sexual. "Aos 25 eu tive a minha vulva machucada por uma colega durante um curso tântrico. Ela é uma mulher branca, padrão. Em um exercício de troca de técnicas, ela disse que não sabia o que fazer com 'isso daqui' apontando para minha vagina. Eram os meus lábios internos que são grandes."
Revolução começa na língua
O preconceito com a hipertrofia vaginal começa na língua portuguesa, que chama a parte interna da vulva de "pequenos lábios", enquanto a parte externa leva o nome de "grandes lábios". A economista Thais Ayd, de 29 anos, conta que passou a adolescência toda com vergonha da anatomia da própria região íntima. "A mudança na nomenclatura é importante. Esses termos são uma determinação da sociedade que ignora totalmente a diversidade de corpo. Se fosse eu mais jovem, sabendo que, ao invés de lábios pequenos e grandes eu tinha lábios internos e externos, talvez eu me sentiria menos envergonhada da minha aparência íntima".
É o que busca fazer a professora Aleksandra Faccion, 21, que leciona biologia em uma escola em São João del Rei, interior de Minas Gerais. Educando crianças e adolescentes com uma visão diferente sobre o próprio corpo e, é claro, usando os termos lábios internos e externos para referir-se à região íntima feminina.
"Acho importante falar sobre essas diferenças que meninos e meninas podem ter no próprio corpo, porque cada corpo é único. Como leciono no primeiro e segundo ano do ensino médio, às vezes, muitos dos meus alunos são imaturos e eu tento abordar o assunto de uma maneira mais leve para não assustá-los. Sempre explico que o modelo que está no livro é apenas o que a sociedade julga como padrão, mas não é 'o correto', já que o corpo humano possui outras formas que não são contempladas nos livros", explica a professora.
Ao contrário de Carol e Taynara, Thais já pensou em fazer ninfoplastia, até por enfrentar desconforto físico com peças como jeans e calcinhas de renda. Os efeitos colaterais da cirurgia como perda de sensibilidade na área, porém, a fizeram desistir.
A caminho do prazer
Segundo a médica ginecologista Mariana Rosário, a cirurgia só deve ser realizada em pessoas como Thais, que enfrentam desconforto no dia a dia ou dor nas relações sexuais. "Precisamos lembrar que cada mulher é de um jeito, assim como as nossas mamas são totalmente diferentes, a vulva também vai ser. Não é por que você tem lábios internos maiores que você tem que operar, só para seguir um padrão; você precisa operar se tiver algum problema", explica.
A médica usa argumentos técnicos para suspender o uso das expressões pequenos e grandes lábios. "Acho que, com a troca de nomenclatura, fica até mais claro de entender. Em vez de falar de tamanho, falamos de posição", pontua.
Já a terapeuta Carol Amanda aborda o tema sob uma perspectiva social, de que a qualificação, tipificação e nomeação do corpo feminino tem sido feita por "homens há séculos". O primeiro passo na tentativa de romper esse padrão pode ser a mudança na nomenclatura. "Quanto mais a gente puder construir uma linguagem própria, com termos que comportem a nossa existência física, melhor para nós", pontua.
Carol, que hoje tem mais de 40 mil seguidores em sua página no Instagram sobre sexualidade feminina descolonizada, conta que a dor e o preconceito a levaram a investigar ainda mais a própria intimidade. Na visão da terapeuta, a chave para combater a tentativa de controle do corpo feminino é a união entre as mulheres: "Precisamos nos juntar e criar mecanismos de defesa — isso vai nos levar não só à aceitação, mas também ao prazer".
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