Eleita para Constituinte: "No Chile, a mulher indígena e pobre é excluída"
A professora universitária Elisa Loncon Antileo, 58, foi uma das 17 indígenas eleitas no último dia 16 de maio para compor a Assembleia que vai escrever a nova Constituição do Chile. A mudança foi uma demanda dos protestos de 2019 e vai substituir o texto escrito durante a ditadura de Augusto Pinochet.
Pesquisadora e docente na Universidade de Santiago do Chile, Elisa fez parte de um pleito histórico no país, que elegeu mais mulheres do que homens e que, pela primeira vez, teve cotas para indígenas. Ela irá compor um grupo de sete representantes dos Mapuche, etnia majoritária no país, com 1,7 milhão de pessoas.
Em entrevista a Universa, a ativista, que foi candidata independente, sem partido político, fala sobre a evolução do movimento feminista, a luta por uma reparação histórica dos povos indígenas e a opressão que sofrem no Chile.
Nós, mulheres indígenas, fomos tratadas como se fossemos primitivas, pouco desenvolvidas. Foi instalada uma patriarcalização horrorosa, que nos impõe uma tripla discriminação: por ser indígena, por ser mulher e por ser pobre
Ao mesmo tempo em defende o direito ao aborto, a professora discute a necessidade que a nova Constituição defina o Estado chileno como plurinacional, que reconheça autonomia e a autodeterminação dos povos indígenas e que garanta o direito público à água, privatizada no país durante a ditadura militar.
"Quando emerge o movimento feminino na sociedade chilena, emerge também o pensamento da mulher mapuche, que vai além da condição de gênero, porque está articulado com a defesa da natureza. Necessitamos instalar uma nova relação com a natureza", afirma.
UNIVERSA - O que explica a eleição de tantas mulheres para a Assembleia Constituinte no Chile?
Elisa Loncon Antileo - Grande parte da revolta social em 2019 foi mobilizada por mulheres. Esse foi um momento em que os setores sociais do Chile saíram às ruas por não suportar mais os níveis de abuso da elite política e do modelo econômico neoliberal, que também é evidentemente patriarcal. Expressões artísticas nas ruas denunciando o patriarcado, como a performance "El violador eres tú" [O estuprador é você], também contribuíram muito e ganharam repercussão internacional. O que vemos hoje se deve à opressão que vivemos há muito tempo e que no Chile é muito forte.
Além disso, tivemos uma presidenta mulher, Michelle Bachelet, que mostrou que também podemos ser presidentas. Tudo isso foi colapsando, pouco a pouco, o tema do patriarcado; fez com que tivéssemos um capital do movimento social, liderado por mulheres, influenciado por fenômenos artísticos, políticos e culturais, somado à opressão que vivemos no Chile.
Por que uma nova Constituição é importante para as mulheres no Chile?
A Constituição chilena foi estabelecida pela ditadura, foi feita entre quatro paredes, sob um regime ditatorial, uma Constituição que não fala nada dos direitos das mulheres. Além disso, a demanda das mulheres tem um componente interseccional, questões de trabalho, porque elas ganham menos, são cuidadoras e isso nunca é reconhecido, são as que têm salários mais baixos, que trabalham mais etc. A Constituição de Pinochet não identifica direitos que, para as mulheres, são fundamentais para avançar em uma sociedade despatriarcalizada.
E quais são as demandas das mulheres mapuche, em especial?
O Estado colonial tem negado e invisibilizado a história mapuche e, ao ser colonial, é também patriarcal. Desde a conquista do império inca pelos espanhóis, há mais de 500 anos, nos foi negada a condição humana. Nós, mulheres indígenas, fomos tratadas como se fossemos primitivas, pouco desenvolvidas. Foi instalada uma patriarcalização horrorosa, que nos impõe uma tripla discriminação: por ser indígena, por ser mulher e por ser pobre. Sempre contribuímos com todo o processo, mas nunca tivemos salário. Os homens saíam para trabalhar, a mulher tinha que se dedicar a todo o cuidado da casa e das crianças, trabalho que não se vê e não se paga
No caso dos mapuche, tudo o que conservamos da nossa nação é também contribuição das mulheres. Se são conservados os valores, a língua, se são recuperadas as terras, é porque aí estavam as mulheres. Mas como a política foi vista como coisa de homens, as mulheres foram deixadas de lado, e tiveram que criar formas de resistência. As mulheres foram chave para gerar uma economia autonômica, vendendo seus produtos e tecidos na cidade. Nada disso é reconhecido.
A identidade mapuche, que significa 'gente da terra', é uma filosofia de que o nosso próprio corpo está conectado com a terra. Os mapuches reconhecemos que na natureza existe o feminino e masculino. Em nós, mulheres, está guardada a força feminina da natureza. Não somos o pedaço da costela do homem. Para nós, foram os poderes femininos que permitiram a criação do universo.
Quando emerge o movimento feminino na sociedade chilena, emerge também o pensamento da mulher mapuche, que vai além da condição de gênero, porque está articulada com a defesa da natureza. Necessitamos instalar uma nova relação com a natureza.
Por que você decidiu se candidatar para fazer parte da Assembleia Constituinte?
Eu venho de uma família mapuche tradicional e somos ensinados, desde criança, que ocuparam nosso território e que algum dia a justiça será feita. Nós somos a Palestina no Chile. A memória oral mapuche é muito forte e existe uma educação paralela à escola. A escola coloniza, a escola discrimina, diz que você é o pior, que o indígena já não existe, que são bêbados, folgados; mas você tem a família e a memória.
Sou falante de mapudungu [idioma mapuche], fui à universidade, sou professora de inglês e linguista. Sempre tive, como acadêmica, um pé na aula, como professora, e outro no movimento social, porque tenho memória. Estudei inglês, porque não existe nenhuma faculdade que nos forme para ser professor no meu idioma materno. Então estudei inglês cinco anos, aprendi todas as competências teóricas e metodológicas de como ensinar uma segunda língua, mas, de outro lado, conheço como fazem os mapuches.
Sou uma ativista que pensa o idioma como parte da dignidade do ser humano e percebi que o maior obstáculo para avançar no reconhecimento dos direitos da nação mapuche é a estrutura estatal monolíngue, monocultural. Então, me sugeriram, desde o movimento indígena, que fosse uma das candidatas da Constituinte, não como uma represente, porque existem diferentes posições no mundo mapuche, mas como uma porta-voz de um setor que reivindica os direitos linguísticos e culturais de maneira coletiva.
Fui eleita em condições muito desiguais em relação aos chilenos, porque os outros constituintes tiveram muito tempo -a paridade de gênero, por exemplo, foi instituída há um ano, enquanto a política indígena de cotas foi em dezembro de 2020.
Por que decidiu se candidatar de forma independente, sem um partido político?
O partido político chileno tradicional precisa de você só para o voto. Eu sou independente dos partidos políticos. Nós apostamos nas cotas reservadas aos povos originários para projetar a independência dos indígenas com os partidos políticos e pensar uma outra maneira de se instalar na política. Frente a um Estado colonial e à desinformação, ainda assim acreditamos que é muito importante o espaço que se abre [na Constituinte]. Levo uma história mapuche e isso me deixa feliz. Se fui eleita para a Constituinte, foi para defender os nossos direitos. E aí vou incidir.
Como mulher e como mapuche, quais são os seus desafios na Constituinte?
Os desafios são o reconhecimento dos direitos coletivos, da defesa da natureza, a instalação dos direitos linguísticos, que necessitamos discutir na Constituinte. Vamos precisar fazer um diálogo para conseguir que, entre os constituintes, a maioria esteja de acordo com a nossa cultura. O direito à água, por exemplo, deve ser um direito de todos os chilenos.
A nova Constituição precisa definir o Chile como um Estado plurinacional e reconhecer os direitos coletivos à terra, ao território, à autonomia, à autodeterminação, à língua e à cultura; reconhecer que, antes do Estado chileno, estávamos aqui; que houve um genocídio e, portanto, é preciso reparar os danos causados ao nosso povo.
Por que o tema da água é tão forte na discussão sobre a nova Constituição do Chile?
Porque, na Constituição de Pinochet, o Estado favoreceu as empresas e a política neoliberal e privatizou a água. No Chile, a água tem propriedade privada, tem donos. As empresas têm usado a água do lençol freático para o cultivo do abacate, de uva [para a produção de vinho], mas as pessoas que vivem nos arredores não têm direito à água, seus animais morrem, não têm água para viver e produzir o básico.
Como pode ser ético que, no Chile, 12 famílias levem todo o lucro, que usem todos os recursos naturais e que sacrifiquem o resto da população? A água tem que ser um direito público, humano, não privado, porque é a base para a vida. Nós, mapuches, entendemos que existem propriedades privadas, mas alguns espaços precisam ser coletivos, sobretudo da natureza.
É uma discussão profunda entre o privado e o público, e a Constituição tem que garantir direitos públicos sociais para todos e, dentro disso, a água é fundamental.
O que a luta das mulheres e dos povos originários do Chile, desde a revolta de 2019 até agora na luta por uma nova Constituinte, pode mostrar para outros países da América Latina?
Eu acho que a confiança no movimento social, que tem outros códigos, que não se definem pela elite. Política não se constrói desde cima, mas se faz nos territórios. As assembleias são a base que sustenta o movimento social no Chile, porque a política da elite agora está debilitada, eles se desvincularam da base e se transformaram na elite, favoreceram o empresariado e deram as costas para o movimento social. Essa é a primeira lição: a luta tem que ter uma base social territorial.
Outro ponto importante é o movimento feminista, que as mulheres temos toda a capacidade para decidir o futuro político de um país e é nosso direito incidir e decidir sobre nós mesmas. Não pode ser que a Igreja Católica influencie as políticas de aborto, de anticoncepção, de planejamento familiar, se o corpo é nosso. Essa luta também passou em outros lugares, como na Argentina, que aprovou a lei sobre o aborto.
Desde os indígenas, podemos aprender a filosofia que articula a relação de equilíbrio da sociedade entre homens e mulheres, mas também com a natureza. Se nós não atentarmos para o desequilíbrio ambiental que existe, não vamos resolver os problemas de pobreza e de qualidade de vida que afetam as nossas populações. Necessitamos ter uma postura distinta frente à natureza, e isso precisamos aprender com os povos originários.
Como se dá a discussão sobre o direito ao aborto nas comunidades de povos originários?
É um tema que tem distintos contextos. Não é a mesma coisa uma acadêmica mapuche falar sobre o direito ao aborto que uma mapuche que está enfrentando as empresas florestais. No entanto, na nossa cultura existe um conhecimento de mulheres. As mães nos educam para os direitos reprodutivos, ensinam práticas, identificam plantas que podem ajudar a fertilidade e para não ter fertilidade também. Isso as mulheres aprendem desde criança, as mães nos ensinam, e os pais não se metem. Por outro lado, foram aplicadas muitas políticas de controle de natalidade [como esterilização involuntária] e a pobreza te faz controlar a natalidade também.
Todas as mulheres estão expostas ao estupro. Não é possível que, depois dessa agressão, você tenha que seguir com uma gravidez. Nas comunidades também existem mulheres mapuches que se converteram ao cristianismo, que são evangélicas, que ao final são induzidas ao pensamento patriarcal. Elas estão no seu direito, mas eu acredito que o mais saudável é ter o direito a decidir sobre o seu corpo.
Para além da Constituinte, o que precisa mudar na política chilena?
Acho que as cotas [para os povos originários] deveriam se instalar de forma definitiva, não somente para a Constituinte, mas também para a representação parlamentar no futuro. Porque, se vamos ter um território autônomo, autodeterminação, níveis de governo local, é preciso ter representação política no Parlamento, a exemplo de países como Noruega e Finlândia. É preciso buscar formas de representação política dos indígenas e as cotas são uma das maneiras de fazer isso.
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