"Evitam falar comigo": pessoas não-binárias relatam desafios sociais
Demi Lovato anunciou recentemente que se identifica como não-binária. Conforme Universa explica neste glossário, o termo se refere a pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limita às categorias "masculino" ou "feminino". Ou seja, quem pertence a esse grupo tanto pode sentir que seu gênero está "em algum lugar entre homem e mulher", quanto defini-lo de maneira totalmente diferente — e distante — destes dois polos.
Vale lembrar que gênero e orientação sexual são coisas distintas: enquanto o primeiro corresponde à forma como cada indivíduo se entende e se expressa no mundo, o segundo (homo, hetero, bissexual e etc) tem a ver com o desejo sexual predominante de cada pessoa. Demi, segundo entrevistas, é uma pessoa pansexual.
Uso de pronomes neutros
Em seu anúncio, Demi também afirmou que prefere o uso de pronomes neutros: "Eu oficialmente vou mudar meus pronomes para 'they/them'. Acredito que isso representa melhor a fluidez que sinto na minha expressão de gênero, e permite com que eu tenha mais autenticidade e honestidade em relação a quem sou, a quem ainda estou descobrindo", disse.
Em inglês, they/them é a terceira pessoa do plural e usado frequentemente na condição de pronome neutro. Já em português, os pronomes neutros mais utilizados são elu (em substituição de "ele" ou "ela") e delu (em substituição de "dele" ou "dela"). Nos adjetivos e substantivos, ocorre a troca das vogais "o" ou "a" por "e". Por exemplo, a palavra "amigos" é substituída por "amigues". As variantes ainda não são oficialmente aceitas, mas estão presentes em grupos de militância e são recorrentes entre a população LGBTQIA+.
Apesar disso, nem todas as pessoas não-binárias optam pela neutralização dos pronomes. Algumas permanecem usando o masculino ou o feminino. Como saber, então, qual a forma correta de tratamento para cada um? A seguir, três pessoas não-binárias explicam, de acordo com suas experiências, a forma mais respeitosa de serem abordadas:
"Acredito que, ao conhecer alguém novo, todos deveríamos questionar seu pronome"
"Tenho 28 anos, mas só passei a me identificar como não-binário aos 26. Essa foi a época em que comecei a ouvir falar sobre gênero fluido e só então consegui olhar com mais clareza para a minha história, para mim: nunca fui homem, nem mulher. Percebi que fugir dessa percepção era inútil, porque ela inevitavelmente continuava existindo. Resolvi ser honesto comigo mesmo e assumir.
Por me identificar também como pessoa trans e usar o pronome masculino, é bastante comum que as pessoas fiquem confusas: para elas, que estão acostumadas com a perspectiva binarista, a readequação só pode acontecer do gênero feminino para o masculino ou vice-versa. Elas tendem a associar a transição com mudar a aparência física, mas o processo vai muito além disso. Ser trans significa não estar de acordo com o gênero que foi definido quando você nasceu.
No mundo ideal, gostaria que todos perguntassem o pronome de todos, independentemente da aparência física. Isso garantiria que as pessoas trans e não-binárias tivessem seus pronomes respeitados e faria com que as próprias pessoas cisgênero tomassem consciência do lugar que ocupam. Entendo que, no caso da linguagem neutra, é preciso se esforçar para se acostumar a usar. Mas descartar a sua existência só porque não é algo que faz parte do dia a dia não é uma boa justificativa"
Jupitter, 28 anos, músico, de São Paulo
"Perguntar não é ofensivo, contanto que não deslegitime"
"Entrei para a universidade aos 17 anos e foi nesse período que tive contato com novas formas de ser humano, ser uma pessoa. Entendi que por muito tempo fui condicionada a ser quem não era, um ser masculino, muitas vezes reproduzindo comportamentos de uma masculinidade tóxica. Ao enxergar isso, cheguei à conclusão de que iria construir outro gênero, um que tentasse ao máximo escapar dessa lógica. Por isso a não-binaridade me caiu muito bem: fujo do conceito de ser homem ou mulher e posso construir meu próprio local de fala.
Como a maioria esmagadora das pessoas está acostumada a lógica binária, elas ficam sim, muito confusas com relação ao pronome. No meu caso, uso o feminino, mas em algumas situações sinto que preciso me expressar através do neutro, porque só assim consigo passar a mensagem que estou me propondo. A linguagem neutra às vezes pode parecer uma 'invenção', uma 'imposição', mas na verdade já existe: porque a língua é viva e tem suas adaptações. Em vez de falar em 'homens' ou 'mulheres', temos a opção de usar a palavra 'pessoas', por exemplo.
Quanto às abordagens iniciais, no caso das pessoas trans que se identificam com o gênero masculino ou feminino, acho delicado perguntar por qual pronome elas gostariam de ser chamadas, porque isso pode ofendê-las, soar como uma forma de deslegitimá-las. Já para as não-binárias, perguntar o pronome é uma excelente forma de se apresentar".
Mun Há, 24 anos, professora de teatro, atriz e cantora, de Recife (PE)
"Não gosto quando usam '@' ou 'x' no lugar da letra 'e'"
"O processo de identificação enquanto pessoa não-binárie começou junto da minha sexualidade. No início, me identificava enquanto mulher lésbica. Mais para frente, aos 13 anos, descobri o significado de pansexual e passei a me apresentar assim. Algum tempo depois, uma experiência fez com que eu repensasse também minha identidade de gênero. Durante uma atividade de trabalho, tive contato com um vídeo com diversas falas transfóbicas e assistir a ele me magoou muito. Só então, investigando em terapia os motivos do meu abalo, compreendi que o incômodo vem do fato de eu ser uma pessoa não-binárie.
Percebo que sim: algumas pessoas evitam falar comigo por não saber como me tratar. Por isso meu primeiro post nas redes sociais foi justamente me apresentando e explicando porque é errado usar 'x' ou '@' na linguagem neutra, uma vez que essa é uma maneira antiga de se expressar e que foi praticamente abolida por não ser inclusiva para pessoas com deficiência visual, já que dificulta a leitura. Também explico que, se a pessoa está na dúvida se é de bom tom me perguntar algo, pode fazer uma reflexão antes para saber se o questionamento é ofensivo.
Por exemplo: eu nunca perguntaria a uma mulher cis, com quem não tenho intimidade, se ela pensa em colocar silicone, então não gosto que perguntem se penso em fazer cirurgia de readequação, se tomo hormônios. Mas com relação ao pronome, é perfeitamente compreensível: sugeriria que, logo no início da conversa, você perguntasse 'como gostaria que eu te chamasse' e partisse o tratamento daí. Quanto ao uso da linguagem neutra falada, entendo que é normal errar e se corrigir logo em seguida. O que não gosto é quando alguém finge que não aconteceu ou pede mil desculpas e depois comete o mesmo erro várias vezes".
Mar, 21 anos, professore de inglês e estudante, de São Paulo (SP)
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