Vítimas de esterilização forçada no Peru: "Agora seu marido não te larga"
Depois de 25 anos de investigações, arquivamentos e pressão de organismos internacionais, a Justiça do Peru começou a analisar a denúncia de que o Estado promoveu milhares de esterilizações forçadas durante o governo de Alberto Fujimori (1990 a 2000) como forma de combater a pobreza — tal procedimento é considerado crime contra a humanidade segundo o Tribunal Penal Internacional. Até o momento, 2.074 mulheres denunciaram ao Ministério Público peruano terem sido vítimas de violação de direitos reprodutivos.
Em fevereiro, o governo peruano reconheceu o direito das vítimas à reparação e a intenção é que elas sejam incluídas em um programa de indenização. Mesmo assim, essas mulheres ainda esperam uma decisão da Justiça.
Fujimori e três ex-ministros de Saúde foram denunciados pelo MP. O governo dele marcou a história do país como um período de autoritarismo e controle das instituições. O ex-presidente foi condenado e está preso por violações dos direitos humanos, chacinas, sequestros e corrupção. As sentenças somam 44 anos.
Segundo o MP, nesse período, mulheres foram submetidas a laqueaduras sem consentimento e sob pressão, mentiras e ameaças. A maioria morava na zona rural, era pobre, analfabeta e não falava espanhol, apenas a língua indígena quéchua. Em 1995, 45,3% dos 24,3 milhões de habitantes do Peru à época estavam em situação de pobreza e 19,3%, em pobreza extrema.
Pelo menos cinco mulheres morreram depois de passar pela cirurgia para o ligamento das trompas, e muitas relatam sequelas que as impediram de levar uma vida normal.
As investigações apontam que as vítimas eram procuradas por agentes de saúde em suas casas e ameaçadas de ficar sem a ajuda de programas sociais que distribuíam remédios e comida. Também eram aliciadas com distribuição de alimentos e em festivais promovidos pelo governo, onde havia tratamentos de saúde gratuitos. Havia metas de esterilizações e prêmios para os profissionais que trabalhavam no Programa de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar.
Ainda há diversas denúncias de esterilizações forçadas que deverão ser contempladas em novas ações. Em 2015, o Ministério da Justiça abriu um registro nacional de vítimas e recebeu milhares de casos. Oficialmente, foram realizadas 273.684 laqueaduras e 22 mil vasectomias por meio do programa, entre 1996 e 2001.
Universa conversou com três vítimas dessa violência cometida pelo Estado. A seguir, elas narram como foi a descoberta do que havia acontecido e falam do preconceito que sofreram.
"Vi mulheres em camas e no chão chorando de dor"
Tomada pela dor que sentia na barriga, Inés Condori não conseguia manter o corpo ereto. Agarrava-se ao corrimão para descer as escadas e ir embora. Aos 30 anos e com quatro filhos, era a primeira vez que passava por um hospital. Havia viajado mais de um dia para buscar atendimento porque sentia um mal-estar desde o nascimento do caçula, alguns meses antes. Saiu de lá esterilizada.
Quando cheguei, vi mulheres em camas e no chão gritando de dor. Veio uma funcionária e pensei que fosse passar por uma consulta. Ela disse 'Já vamos te ver'. Trocaram minha roupa e me sentaram em um banco. Acordei depois em uma cama. Não conseguia levantar, só sentia dor. Uma enfermeira disse 'Vista a roupa, isso é não é nada, é só um pequeno corte para que você não tenha mais filhos. Agora você vai voltar a ser jovem e seu marido já não vai te trocar por outra'
Inés conta que saiu do hospital andando agachada. Voltou no dia seguinte porque não suportava a dor, mas não recebeu sequer um analgésico. Mais de 25 anos depois, ela ainda se emociona ao lembrar que teve que se conformar e voltar para casa.
"Tinha que cuidar dos meus quatro filhos, mas já não conseguia cozinhar, lavar roupa e dar conta do trabalho no sítio. Minha mãe chorava comigo. Eu trabalhava no campo, era acostumada a caminhar até cinco horas. Mas já não conseguia fazer força nem andar muito."
A cirurgia foi tratada como um segredo na família. Inés tinha vergonha e medo de sofrer preconceito no povoado onde vivia, a 237 km de Cusco, nos Andes.
Apontavam para uma mulher e diziam 'Essa anda com vários homens, ela fez ligadura [das trompas] para não ter filhos'. Eu só escutava e não dizia nada
A história começou a mudar quando, em 2002, uma obstetra foi ao povoado dar uma palestra sobre saúde. Foi aí que algumas mulheres começaram a relatar problemas depois das laqueaduras. A médica ouviu os depoimentos e condenou a forma como as cirurgias haviam sido realizadas, e as mulheres resolveram procurar o Ministério Público. A notícia correu, e surgiram mais denúncias. Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional passaram a apoiar a causa. Inés já não se envergonha do passado e hoje preside uma associação de vítimas da região de Cusco.
Queremos justiça e reparação. Algum dia vamos conseguir, mas sei que não será rápido. E, se não conseguirmos, nossos filhos conseguirão e esses abusos já não acontecerão com eles.
"Meu marido disse que fiz a laqueadura para ter outros parceiros"
Aos 26 anos, Maria Elena Carbajal havia acabado de dar à luz ao quarto filho e esperava angustiada para ver o bebê em um hospital na periferia de Lima. Era setembro de 1996.
Quando uma equipe de saúde foi vê-la, perguntaram se ela utilizava algum método anticoncepcional. Maria Elena contou que não. O marido não permitia, dizia que "as mulheres da rua é que se cuidavam, a mulher dele, não". "Me perguntaram se eu queria ter filhos igual ao 'cuy' [porquinho-da-índia popular no Peru] e disseram que estavam fazendo ligaduras de trompas, mas não mencionaram a palavra esterilização".
Enquanto a insistência continuava, Maria Elena sentia crescer a angústia de não ver o filho e temia que ele tivesse sido roubado, pois havia antecedentes naquele hospital. "Diziam que já iam trazê-lo e nada." Ao final, ela cedeu com a condição de ver logo o bebê. A cirurgia aconteceu imediatamente. Quando acordou, encontrou apenas o marido.
Ele pensou que eu havia aceitado a laqueadura para poder ter outros parceiros. Ficou com raiva, me insultou e foi embora. Fiquei nervosa, chorando, porque ele não se importou com o que haviam feito ou onde estava nosso filho. O machismo foi mais forte
Maria Elena só conseguiu ver o bebê horas depois. Quando teve alta, se viu obrigada a voltar para a casa da mãe com os quatro filhos. O marido nunca mais apareceu.
"Me sentia culpada porque ele havia ficado com raiva e se afastado dos filhos. Nem pensei que não havia sido minha culpa. Acreditei também que havia sido algo da vida, um acaso. Deixei meus filhos com minha mãe, fui trabalhar e comecei meu calvário. "Foram anos de mudanças e luta para sobreviver. Aos 31 anos, com um novo companheiro, quis engravidar outra vez. Só aí ficou sabendo que o procedimento feito era irreversível. O namorado, que ainda não tinha filhos, terminou o relacionamento.
"Fiz exames e viram que eu já não produzia hormônios. Fui medicada com substituição hormonal e tive descalcificação, problemas na coluna e nos joelhos, nas pernas, já não tenho a força que tinha antes. Tenho 51 anos e hoje pareço uma senhora de 80", relata.
A culpa por ter feito a laqueadura só a deixou em 2017, quando foi a um evento da Prefeitura de Lima e encontrou uma campanha do governo que buscava localizar mulheres esterilizadas no governo Fujimori.
Comecei a assistir às reuniões e pouco a pouco fui me inteirando da situação, de que não havia sido casualidade nem minha culpa. Tudo havia sido manipulado e planejado.
"Perdi meu bebê e médico disse que eu já estava 'esterilizada'"
Victoria Vigo é a única vítima que conseguiu uma condenação na Justiça. Em 2001, o médico que a operou foi sentenciado a pagar uma indenização de US $ 2,5 mil (R$ 13.383 no câmbio de hoje). Mesmo assim, o resultado ainda tem um gosto amargo.
"Esse médico nunca se aproximou, o conheci no julgamento. Só disse que estava cumprindo ordens. Apesar do processo, continuou trabalhando, recebendo salário. Jamais foi demitido ou suspenso. Até se aposentou com todos os benefícios", conta. A indenização foi paga em prestações mensais ao longo de três anos. Não houve condenação criminal.
Sozinha, Victoria havia percorrido um caminho perigoso. Em pleno governo Fujimori, ela enfrentou a indiferença do Conselho de Medicina peruano e três arquivamentos no Ministério Público.
Quando começou o julgamento, saíram ataques contra mim na imprensa dizendo que estava louca, que tinha câncer, que me pagavam. Muitas vezes senti medo. Todos eram fujimoristas. Sofri ataques psicológicos, me seguiam na rua, me mandavam flores como se estivesse morta. Fui perseguida todo o tempo.
De classe média, Victoria destoa da maioria das vítimas e sabe que isso foi decisivo para que buscasse justiça o quanto antes. Ela vivia com o marido, engenheiro civil, em Piura, no norte do Peru. O casal tinha uma pequena construtora e fazia casas e estradas. Ela administrava a empresa.
Em abril de 1996, nasceu seu terceiro filho, de parto prematuro. O bebê sobreviveu apenas 19 horas. "Quando me deram a notícia, queria ir embora, não suportava estar ali", lembra.
Para me consolar, o médico que passava visita me disse que eu era jovem, tinha 30 anos, e poderia ter outro filho. Mas havia outro médico perto que comentou 'Não, ela já está esterilizada'. Eu escutei tudo.
Enquanto buscava justiça, Victoria passou a viajar pelo Peru, conheceu outras vítimas e decidiu "ser voz de quem não podia ser voz".
"Havia muitas Victorias Vigo, mas que sentiam muito mais dor. Viviam longe, sem falar espanhol, muitas eram analfabetas. Eram operadas em postos de saúde, sem risco cirúrgico, e retiradas em carrinhos de mão, esses que se usam na construção, porque não havia macas. Depois ficavam deitadas em colchonetes no chão. Não havia seguro social, elas tinham que comprar os próprios remédios. Muitas ficaram com feridas inflamadas e não podiam mais tecer, o que era a única fonte de renda. Essas mulheres foram torturadas."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.