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Autora só de protagonistas LGBT: "Falo do cotidiano, não sobre ser lésbica"

"Amora", livro de contos da gaúcha Natalia Borges Polesso, 39, que ganhou o Jabuti, foi eleito pela revista de Oprah Winfrey como uma das 44 obras que estão ajudando a mudar a cena LGBTQIA+ - Bruno Kriger
"Amora", livro de contos da gaúcha Natalia Borges Polesso, 39, que ganhou o Jabuti, foi eleito pela revista de Oprah Winfrey como uma das 44 obras que estão ajudando a mudar a cena LGBTQIA+ Imagem: Bruno Kriger

Mariana Gonzalez

De Universa

26/05/2021 04h00

Jovens que enfrentam a depressão, uma criança que tenta entender por que os pais se referem à vizinha de forma ofensiva e idosas que vivem juntas há décadas mas se apresentam como amigas para a família. O que essas histórias têm em comum? Todas têm mulheres lésbicas como personagens principais e foram publicadas em "Amora" (ed. Não Editora), da escritora gaúcha Natalia Borges Polesso, em 2015.

No ano seguinte, a coletânea foi consagrada com o Jabuti, o mais importante prêmio de literatura do país, na categoria de contos e também na de escolha do leitor e até hoje colhe louros. Recentemente, a "Oprah Magazine" — sim, a revista da Oprah Winfrey — elencou o livro, que ganhou tradução em inglês, como um dos 44 que estão ajudando a mudar o cenário LGBTQIA+ (Lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, queers, intersexuais, assexuais e demais existências de gêneros e sexualidades) nos Estados Unidos.

Além de "Amora", a autora de 39 anos publicou outros sete livros, todos com personagens homoafetivas no centro das narrativas. Em entrevista a Universa, Natalia, que também é doutora em Literatura, defende a importância da diversidade nas histórias, mas diz que rejeita que seus livros sejam considerados "de temática LGBTQIA+".

Eu não escrevo sobre lésbicas. Escrevo sobre diversos temas, mas com personagens lésbicas. Quando a gente diz que representatividade importa, é isso

UNIVERSA: "Amora" foi traduzido para inglês e espanhol e, recentemente, foi citado pela "Oprah Magazine" como um dos livros que estão mudando o cenário LGBTQIA+ nos Estados Unidos. Esperava que o livro chegasse tão longe?

NATALIA BORGES POLESSO: "Amora" sempre me traz surpresas no caminho que vem fazendo. O e-mail que recebi das minhas editoras dos Estados Unidos tinha o título de "Oprah loves you" [A Oprah te ama] — obviamente uma brincadeira, porque o livro já tinha aparecido na revista da Oprah antes. É muito bom saber que "Amora" faz sentido para outros países cinco anos depois, afinal, muita coisa mudou não só na literatura mas na percepção social que nós temos sobre questões LGBTQIA+ de 2016 para cá.

Eu recebo mensagens de leitores e escritores que estão começando dizendo que "Amora" mudou a forma como elas percebem personagens LGBTQIA+ na literatura e sempre me emociono. Esse livro é produto das faltas que eu senti, das coisas que eu não via quando era mais jovem — um, porque esse conteúdo era muito escasso, dois, porque não circulava nas livrarias. Tudo que eu encontrava com representatividade lésbica, guardava como se fosse um tesouro: livros, filmes, por isso "Amora" é importante: não só por trazer as histórias que traz, mas por ter sido premiado, reconhecido.

Acredita que um livro é capaz de ajudar a mudar o cenário das pessoas LBTQIA+ de um país, especialmente do Brasil?

Natalia Borges Polesso - Bruno Kriger - Bruno Kriger
"Não escrevo sobre lésbicas; escrevo sobre diversos temas, com personagens lésbicas", diz Natalia
Imagem: Bruno Kriger

Sim. Socialmente, o Brasil ainda é um país muito violento para pessoas LGBTQIA+, especialmente pessoas trans, e isso é assustador. A gente tem avançado muito em termos de aceitação pessoal, mas ainda é preciso que a sociedade avance. Faltam políticas públicas nas escolas para evitar a evasão escolar, por exemplo — isso acarreta em questões no mercado de trabalho, questões econômicas. Na literatura, por exemplo, a gente começa a ter uma circulação maior de histórias, de perspectivas e até de intersecções, com personagens mais diversos. Isso acaba sendo uma representação política que vai gerar impacto sobre os leitores, ajudar a povoar o nosso imaginário para que a gente pense em existências que não sejam heteronormativas.

Em que medida seus romances e seus contos são inspirados em experiências pessoais?

Tem histórias totalmente ficcionais, tiradas da minha cabeça, e tem coisas que são parte de histórias que eu vivi ou ouvi, coisas que acontecem com as pessoas. O conto "As Tias" [em "Amora"] mostra uma situação que eu via desde a infância e que está presente em muitas famílias: a tia que mora com a amiga, mas que na verdade são casadas, e que a família não entende muito bem aquela relação.

É claro que tem muitos fragmentos desses contos que são pessoais, falam de coisas que me atravessam, mas que ainda são ficcionalizadas. Mas não gosto quando fazem a ligação direta de assumir que, por eu ser lésbica, as histórias são sobre mim.

Teve medo que, por trazer personagens LGBTQIA+, seus livros ficassem restritos a um nicho de leitores?

Eu não tenho muito medo de nicho. Se a gente considerar questões de mercado, de marketing, o nicho LGBTQIA+ é ótimo, só cresce no Brasil. Mas "Amora" fez um outro caminho, muito em função dos prêmios, e virou uma leitura não tão nichada, o que eu também acho muito bom. No meu trabalho como teórica, nas minhas pesquisas, vou contra a ideia de classificar livros sob uma temática LGBTQIA+.

Por quê?

Eu escolhi escrever com personagens lésbicas, mas eu não escrevo sobre lésbicas. Conto diferentes histórias que se passam em diferentes cenários, mas com personagens lésbicas no centro — quando a gente diz que representatividade importa, é isso. Meu último livro, por exemplo, conta a história de lésbicas no fim do mundo, mas o livro não é sobre a sexualidade delas.

Uma vez recebi uma crítica de um livro meu dizendo que a história falava de sexualidade, quando não falava.

Só por ter personagens LGBTQIA+, as pessoas heterossexuais enxergam coisas que não estão ali. Como se, ao colocar personagens lésbicas, elas só podem ser lésbicas, afinal é só isso o que elas fazem: se relacionam umas com as outras. Mas eu escrevo sobre a vida, episódios cotidianos envolvendo relações familiares, de trabalho.

Por isso em "Amora" nem todas as personagens têm esse perfil da jovem adulta em busca de uma relação, certo? Há idosas, crianças, e com questões que nem sempre passam por relacionamentos afetivos.

Sim. Esse foi um ponto que trabalhei justamente com o objetivo de tirar o olhar de fetiche que envolve a sexualidade. Quando a gente fala de mulheres lésbicas, especialmente as jovens, esse olhar persiste.

A gente pensa em pessoas LGBTQIA+ e logo associa a casais, dificilmente imagina as relações dessas pessoas na família, no trabalho, entre amigos. São outras partes da vida igualmente importantes para nós.

Acredita que existe uma demanda reprimida por mais livros com histórias homoafetivas? Ainda há pouca literatura sendo produzida com personagens LGBTQIA+?

Como eu pesquiso esse assunto, sei que tem muito material, mas a circulação é muito restrita. Ainda há uma carência por autores LGBTQIA+ nas grandes editoras, embora hoje a gente tenha muito mais do que há cinco anos, quando lancei "Amora".

Há muitos autores e autoras independentes publicando, mas deveria ter mais espaço, porque os leitores têm essa demanda reprimida por histórias mais diversas, não só da comunidade LGBTQIA+. Ou seja, tem se produzido mais, mas a gente não tem meios de dar contingência para essa produção. Até porque, nos últimos anos, nossas políticas públicas de incentivo à cultura andam bem capengas — as pessoas não sabem, mas a Lei Rouanet ajuda muito a fazer circular essa produção independente de literatura.

Em 2018, "Amora" foi aprovado no Plano Nacional do Livro Didático, o que significa que ele pode ser trabalhado nas escolas públicas de todo o país. Como o livro pode influenciar na formação de adolescentes?

"Amora" foi publicado em 2016, mesmo ano em que venceu o prêmio Jabuti na categoria contos - Divulgação - Divulgação
"Amora" foi publicado em 2016, mesmo ano em que venceu o prêmio Jabuti na categoria contos
Imagem: Divulgação

Considero esse o maior prêmio do "Amora". Foram impressas e distribuídas em torno de 70 mil cópias para as escolas. Isso é muito importante, muito legal, muito tudo — nem sei que palavra usar. Mas é importante em termos de representatividade. Se eu tivesse lido algo como "Amora" na minha adolescência, essa leitura talvez tivesse me dado outros horizontes, outras perspectivas de vida. Tive poucos feedbacks de alunos e professores porque o edital foi aprovado em 2018, ano em que começou o desmonte dos ministérios da Cultura e da Educação, por isso as cópias foram impressas, mas demoraram para ser distribuídas e chegaram às escolas no segundo semestre de 2019, meses antes da pandemia.

De que forma a literatura entrou na sua vida? E qual a importância dela ao longo da sua formação pessoal?

Minha primeira lembrança de contação de histórias é de quando meus pais se mudaram para outra cidade, e eu fiquei morando com a minha avó. Ela cresceu no meio rural e me contava "causos" da roça antes de dormir. Falava das vacas, da casa de chão batido, e eu, criança, ficava fascinada, pensando: "Como pode uma casa ter chão de terra?". A partir dessas histórias de família, comecei a escrever. Estudei letras para dar aulas de inglês. Foi isso que me sustentou durante muito tempo e sustenta até hoje com as traduções. Depois fui enveredando para a pesquisa na literatura e, no doutorado, publiquei meu primeiro livro.

A literatura é tudo para mim. Parece idiota dizer isso, mas é verdade. A literatura me fez viajar de forma simbólica e literal: para além de me ajudar a ampliar horizontes, compreender melhor o mundo, a escrita me levou para outros países. Fui fazer doutorado na França e foi lá que conheci a Dani, minha esposa. A literatura me deu o mundo.

Seu último livro, lançado em 2020, tem a seguinte sinopse: "Uma doença fatal assola o Brasil e o transforma em uma terra pós-apocalíptica sem governo, sem leis e sem esperanças". O livro é uma ficção, mas esse cenário parece muito familiar, não?

Pois é [risos]. O "Corpos Secos" (ed. Alfaguara), por mais que seja esse espelho da realidade, foi escrito entre 2018 e 2019, quando a pandemia não estava no horizonte. E a coincidência nos assustou bastante. A história tem críticas ao governo e ao uso de pesticidas, mas era para ser uma ficção distópica, até uma brincadeira, não era para se aproximar tanto da realidade como acabou acontecendo. Em junho, estou lançando o "Extinção das Abelhas", que comecei a escrever em 2016 a partir de inquietações que eu tinha sobre o mundo, sobre como a gente demora para ver como as coisas estão ruindo, entrando em colapso. Não tem nada a ver com a pandemia em si, mas fala do fim da normalidade, das coisas que estão entrando em colapso ao nosso redor. É um romance, a protagonista tenta compreender o que está acontecendo com o mundo.