Lei mudou teste do pezinho: "Meu filho não anda por falta de exames no SUS"
Repórter da Globo em Minas Gerais, Larissa Carvalho, 44, desejou e planejou a gravidez do seu segundo filho, Theo, 5. Aos cinco meses de vida, no entanto, ela percebeu que havia algo errado com o seu bebê. "Ele nunca deu sinal de que ia sentar, nunca conseguiu segurar um objeto, não rolou. Era um bebê conectado em tudo, rindo de tudo, achando tudo legal, mas o corpo era molinho, como se fosse um recém-nascido. Aí a gente achou esquisito", diz a Universa.
O diagnóstico preciso só veio quase dois anos depois: Theo tinha Acidúria Glutárica, uma doença metabólica que impede o organismo de absorver as proteínas ingeridas, como as do leite, o que vai matando os neurônios do bebê e causando sequelas irreversíveis, como problemas motores e cegueira. Por causa disso, ele não anda, não fala e não senta.
A doença de Theo poderia ter sido diagnosticada antes e as sequelas, evitadas, por meio do teste do pezinho — exame realizado nos primeiros dias de vida do bebê com a coleta de uma amostra de sangue do pé da criança. O problema é que o teste do pezinho disponível no SUS (Sistema Único de Saúde) só detecta seis doenças raras, enquanto na rede privada, o exame com custo médio de R$ 500, é capaz de identificar até outras 50 condições, entre elas, a de Theo.
Ela decidiu então se juntar a outras família de crianças que não tiveram acesso ao teste do pezinho mais completo para pedir mudanças no sistema de saúde. Nesta quarta (26), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou a lei que havia sido aprovada pelo Congresso há um ano e que obriga o SUS a ampliar de seis para 53 as doenças pesquisadas por meio desse exame.
"A sanção da lei é um sonho. Lutamos muito. Agora, é seguir vigilante: cobrar a regulamentação do novo teste até o meio do ano que vem. Depois disso, o Ministério da Saúde deve ampliar o exame aos poucos — as doenças serão incorporadas ao longo de quatro anos, em quatro etapas. Até lá, todo bebê deve fazer o teste mais completo na rede particular", diz ela a Universa.
Larissa decidiu contar sua história e a de outras famílias que não tiveram o diagnóstico precoce de doenças em seus bebês no documentário "Uma Gota de Esperança", que estreou neste mês no serviço por assinatura Globoplay, e do qual ela assina o roteiro. Na entrevista a seguir, a jornalista, que também é mão de João, 15, narra a rotina diária de terapias do filho, a revolta com o diagnóstico e a solidão das mães de uma criança com deficiência.
Eu fiquei muito indignada com os médicos, com o SUS, com essa omissão de informação, com a sociedade brasileira que não cobra mudança do teste do pezinho. Aí eu entrei na luta.
UNIVERSA - Como foi a gestação do Theo? Planejou ter o segundo filho?
LARISSA CARVALHO - Eu já tinha o João, de 10 anos, e o meu marido na época, uma menina de 12, a Mariana. Então tínhamos duas crianças. Eu sempre quis ter mais um filho, desejei muito o Theo e me organizei para recebê-lo. Fui uma grávida supercomprometida, fiz o pré-natal, procurei os melhores profissionais, fui ao pediatra grávida antes mesmo dele nascer.
Eu quis muito esse bebê, e ninguém falou sobre o teste do pezinho ampliado que não era coberto pelo SUS, só pela rede privada. Os profissionais se preocuparam em falar das vacinas, do cordão umbilical, orientaram sobre tudo, mas ninguém teve a luz de falar "Olha, não faz o teste do pezinho no posto de saúde, faz na rede particular, que rastreia mais doenças". Quando o Theo nasceu, fiz as primeiras vacinas no posto e já me falaram "Vamos coletar o teste do pezinho". O que você responde? Sim, porque você não sabe que ele é limitado, que é ineficiente. Eu não sabia nada disso.
Quando você começou a perceber que havia algo diferente com o Theo?
Essas doenças da família do teste do pezinho não dão o menor sinal. O meu filho nasceu perfeito, os primeiros exames não deram nenhum sinal. Em casa, a única coisa que me intrigava era que ele mamava pouco. Parecia ter que fazer muito esforço para sugar. O leite jorrava e ele ficava suando, tinha uma dificuldade de sucção, como se ele estivesse lutando. E, na verdade, ele estava. Desde as primeiras mamadas, a gente já estava matando os seus neurônios sem saber. Depois é que a gente foi entender.
Theo nunca deu sinal de que ia sentar, nunca conseguiu segurar um objeto. Era um bebê conectado em tudo, rindo de tudo, mas o corpo era molinho, como se fosse um recém-nascido. Aí a gente achou esquisito. Fui à pediatra e perguntei: "Você está achando ele devagar?". Ela falou: "estou e já queria pedir para fazer um exame". Eu falei: "Exame? Pode ser que ele esteja preguiçoso. Vamos fazer uma ginástica, uma fisioterapia com ele, não?". Ela disse: "Eu acho que você tem que preparar o seu coração". E perguntei: "Mas um problema sério assim? Muscular?". Aí a doutora disse: "Neurológico". A minha vista ficou preta.
Fui direto com ele fazer a ressonância, que mostrou que ele tinha perdido neurônios em uma parte da cabeça. A médica disse que possivelmente ele tinha ficado sem ar em algum momento, ou no parto ou na gravidez. Daí eu comecei uma saga. Fui a muitos neuropediatras e todos errando. Eles viam aquele laudo e repetiam "faltou ar". Eu sabia que não, porque foi uma gravidez típica, um parto típico. Que hora faltou ar para esse menino? Eu sabia que não era isso.
Quanto tempo você levou até ter um diagnóstico correto da doença?
No hospital Sarah Kubitschek (Rede Sarah), em Brasília, fizeram todos os exames, ouviram o que eu estou te falando, que meu filho não teve sofrimento, que chorou na hora do nascimento, que a obstetra falou que não tinha sido no parto. O diagnóstico veio quando ele tinha um ano e dez meses. Quem tem Acidúria Glutárica e come proteína livremente, perde neurônios. O Theo não tem a capacidade de metabolizá-la. Então, se ele come proteína, começa a liberar um ácido, que intoxica o organismo e mata neurônios. Esse tempo todo eu fui amamentando, dando papinha com carne, com feijão, e ele não parava de perder neurônios sem a gente saber.
O primeiro erro em todo esse processo é que a gente não tem um teste do pezinho eficiente, com o diagnóstico certo, que permita aos pais começar o tratamento nos primeiros dias de vida. O segundo erro é uma falha de diagnóstico, porque as faculdades de medicina não dão atenção para doenças raras. A pediatra, eu até perdoo, porque é médica geral do bebê. Agora neuropediatra, um, dois, três errarem, eu não aceito.
O que sentiu ao descobrir o que seu filho tinha e que a doença poderia ter sido diagnosticada antes?
Primeiro, um alívio profundo de ter um diagnóstico, de saber o que era, ainda que fosse uma tragédia. Até aquele momento, eu tinha passado todas as madrugadas na janela pedindo a Deus uma resposta.
A angústia de uma mãe sem um diagnóstico se equivale a uma mãe que tem um filho desaparecido. É desesperador.
Eu olhava para ele e pensava: "será que foi aquela taça de vinho que eu tomei quando estava grávida? Será que foi o dia em que fiquei em uma piscina quente para fazer uma foto?". Eu enlouquecia, ficava me cobrando, porque queria uma resposta. Então, quando a gente teve um diagnóstico, eu fiquei muito aliviada.
O meu outro sentimento foi de muita indignação com o sistema público de saúde, porque, ao não ter um teste do pezinho adequado, o SUS botou o meu filho em uma cadeira de rodas -- e não é só ele. A cada ano, um bebê a cada 2.500 vai ter uma dessas doenças que não vai ser diagnosticada. Ninguém falava sobre isso.
Eu fiquei muito indignada com os médicos, com o SUS, com essa omissão de informação, com a sociedade brasileira que não cobra mudança do teste do pezinho. Aí eu entrei na luta. Encontrei o Instituto Vidas Raras, que é essa ONG que dá apoio para famílias de pessoas com doenças raras, ajuda com medicamento, a judicializar uma ação, dá orientação.
Por que você decidiu se envolver nessa luta pela ampliação do teste do pezinho?
Não posso ficar dentro da minha casa só cuidando dele, seria muito egoísmo. Eu estaria repetindo o que a Saúde brasileira está fazendo ao não falar, não contar, não partilhar as histórias. Eu quis colocar a boca no trombone e contar para todo mundo a história do Theo para evitar que aconteça com outras famílias. Não podia dormir com isso.
Eu acho que tem a ver também com o fato de que jornalista não aceita saber que tem algo errado e não fazer nada. Quando eu tive o diagnóstico, eu não achava uma matéria que falava disso, uma informação. Hoje eu tenho um grupo de 80 mães, todas com filhos vítimas do teste do pezinho do SUS. Eu não sossego enquanto eu não mudar isso, porque é injusto, é cruel e vale a pena.
O Ministério da Saúde argumenta que não vale a pena investir na ampliação do teste do pezinho, porque essas doenças são muito raras. Como vocês respondem a esse tipo de argumento?
Especialistas já fizeram essa conta: vale muito mais prevenir do que tratar outros Theos pelo Brasil afora. O SUS tem um gasto médio de R$ 8 mil a R$ 10 mil reais por mês com pessoas que têm sequelas, quando não internam, porque o teste do pezinho não rastreou na hora certa.
A rede vai ter que se reestruturar para ampliar o teste, óbvio que isso tem um custo, que é um desafio. Mas quando você soma o custo do quanto você gasta com as sequelas, com fonoaudióloga, ecoterapia, banheira, cadeira de rodas, uma tutora do lado na escola, quatro medicamentos, uma fórmula que custa R$ 2.040 a lata a cada 15 dias, tudo isso está na conta do SUS. Não íamos precisar de nada disso se a gente tivesse o diagnóstico no posto de saúde.
A conta é a seguinte: em dois anos e oito meses, já se pagou o investimento em novas máquinas e em equipes [para fazer um teste do pezinho ampliado em todo o país]. Então vale a pena. Outra coisa: o Theo vai viver a vida toda sustentado pela Previdência, pelo sistema público. Então é muito caro uma criança com sequela.
Qual é a rotina de vocês hoje com o Theo?
Ele não senta, não anda, não fala. Ele entende tudo, mas o corpo não dá conta. É muito injusto. A gente tem que pesar tudo o que ele come, cada grão de arroz, cada grão de feijão, porque ele tem uma cota de 16 g proteína por dia. Se ele ultrapassar isso, vai perder mais neurônios. O primeiro é esse: a cozinha é um laboratório, a gente pesa, pesa, pesa; anota, anota, anota; e tem muita atenção com ele o tempo inteiro.
A segunda coisa é que hoje são dez sessões de terapias por semana: fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, musicalização, equoterapia e esporteterapia. Ele está em uma escola regular, junto com crianças típicas, com uma tutora por conta dele, ajudando ele a segurar o lápis.
Tudo isso eu entrei na Justiça para conseguir. Foi o SUS que botou o meu filho na cadeira de rodas. Ninguém entrou na minha casa para ver a minha tristeza, a devastação que foi na minha família, ninguém vai me ajudar com essa rotina louca, mas o mínimo é que eles paguem a conta. O leite também fui à Justiça e consegui. É uma luta.
E o que te fortalece?
Eu deveria te dizer que tenho fé, mas a minha fé é tão flutuante, que ia ser hipócrita da minha parte. Eu andei fazendo as pazes com Deus e estou mais fortalecida nesse sentido. Hoje eu acredito no sentido de tudo, que esse menino tinha que ser meu assim, que a gente tinha que ter essa história. Eu acho que é uma missão. Hoje eu já aceitei, sem sofrer mais e sem questionar. Eu simplesmente cuido, amo, me dedico, faço tudo o que eu posso pelo Theo.
Eu tenho um irmão que é médico e amigos que me falaram: "não dá para deixar você sozinha, nós vamos marcar uma consulta". Eu fui ao psiquiatra, tomei uns remedinhos mesmo. Às vezes, a gente tem que reconhecer que tudo bem ter uma ajuda de fora. E foi ótimo para mim, faria de novo. A gente tem que aprender a aceitar ajuda. Não dá para fazer tudo sozinha.
Em algum momento você se sente ou se sentiu sozinha?
Não adianta, por mais que eu tenha um namorado, pessoas que falem "vai lá, mãe, vai fazer a sua unha, que eu fico aqui com ele", que eu tenha uma funcionária que é um anjo, por mais que o pai seja presente; não adianta.
Ter um filho com deficiência é se sentir sozinha, por mais que você esteja rodeada de pessoas, a frustração só a gente sabe o que é. Há uma solidão permanente.
Eu sou feliz, animada, mas de fato há uma situação que é muito exclusiva da mãe de uma criança com deficiência. Cansada ou não, sou em quem tem que dar conta de algumas coisas. Agora, eu sou feliz com ele, do jeito que ele é, não apesar dele. Eu nem lembro que ele tem problema, isso tudo já está incorporado à minha rotina.
O que você aprendeu com o Theo?
Aprendi a lidar com o tempo. Eu trabalho na rua, sempre fui rápida e ligeira. Aprendi a ser menos aflita e mais generosa com as pessoas que não têm o ritmo que eu tenho. Aprendi também a ser mais empática. Eu nunca tinha olhado para as pessoas com deficiência, eu nunca tinha parado e pensado em fazer parte de um movimento, que me abriu também para outras causas. A gente ganha muito compartilhando, oferecendo o que pode como voluntária. De alguma forma, eu vejo a minha vida com mais dificuldade, sim, mas também com mais planejamento.
Você sente alguma culpa?
Eu tento racionalizar ao máximo. O único jeito de saber era pelo teste do pezinho. Eu não tinha o que fazer. Qual mãe amamentaria, daria papinha sabendo que ele não podia comer proteínas? Então, tento pensar racionalmente. A questão é, emocionalmente, eu não controlo isso. Todos os dias eu me lembro de quando amamentava, dava comida, não tem como eu cancelar esses momentos que foram decisivos. Eu sei que é uma culpa burra, que não é lógica. Fui eu que dei comida, sem saber, mas fui eu.
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