Mulheres negras falam sobre lições de filósofa africana para se relacionar
A ideia de que depois do término de um namoro ou em meio a uma crise no casamento a gente precisa se isolar e tentar encarar as dores emocionais sozinha pode ser bem comum. Mas a filósofa africana Sobonfu Somé ensina justamente o contrário. Para ela, as tempestades na vida de um casal devem ser compartilhadas com a comunidade que o cerca.
A teoria é parte das lições do livro "O Espírito da Intimidade: Ensinamentos Ancestrais Africanos Sobre Maneiras de Se Relacionar", da escritora Sobonfu Somé, que viveu na aldeia Dagara, na África Ocidental. Tem sido acolhida por mulheres negras que se dedicam a enxergar os relacionamentos com uma perspectiva da ancestralidade. Com os saberes de seu povo, a filósofa morta em 2017 ensina como valorizar a vida a dois, o casamento e a intimidade com conexão com a espiritualidade.
Nas redes sociais, "O Espírito da Intimidade" é até tema de rodas de conversa virtuais. A seguir, três mulheres negras contam para Universa como a leitura impactou a forma de se relacionarem afetivamente.
"O Espírito da Intimidade" e a visão sobre relacionamentos
Escrito e publicado em 1997 nos Estados Unidos, "O Espírito da Intimidade" ainda tem reedições em inglês, mas a última edição em português é do início dos anos 2000. Há, portanto, uma dificuldade prática para o acesso à palavra da filósofa no Brasil; o original pode custar até R$ 500 em sebos virtuais. A internet é a saída: há leitores que compartilham o livro em versões digitais e é possível assistir a algumas palestras de Sobonfu sobre o tema no YouTube.
Para a filósofa, casamento, divórcio, conflitos, romance e relações homossexuais têm abordagens mais espiritualizadas do que o mundo ocidental supõe. Em seu povo, por exemplo, pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo são "guardiães do portão que liga as aldeias para outros mundos".
"É um texto simples, objetivo e muito profundo. Para gente, que é preto, mostra que temos nossa própria história e que a forma de se viver no Ocidente é só uma forma, e não o jeito único", afirma a administradora da página do Instagram Reconstruindo a Intimidade, Renata Lima Mendonça, que promove rodas abertas de leitura da obra na rede social.
"Quero alimentar a ideia de renovação de votos nas minhas relações"
"Um dos ensinamentos que mais me surpreendeu é sobre a renovação de votos em um casamento. No Ocidente, temos um contexto mercadológico, mas, entendi que é reafirmar laços com a pessoa que você está se relacionando, porque com o tempo as coisas se diluem. Isso é algo precioso, que quero alimentar nas minhas relações.
Fui apresentada ao livro pela pesquisadora do corpo feminino Maria Chantal, em um momento que estava vivendo o luto de um término, já durante o isolamento social. O livro me orientou para eu me entender, ficar com minhas dores.
Além disso, traz uma perspectiva muito plausível para a monogamia, configuração afetiva que talvez a gente veja como conservadora agora. Não tenho nada contra poliamor. O livro, no entanto, fala da importância "energética" que é estar com alguém, espiritualmente falando.
A leitura de "O Espírito da intimidade" não é só sobre as questões do campo afetivo: Sobonfu decifra como são as sociedades tribais africanas, que é algo pouco falado por nós, mas que, como brasileiros, temos de herança. Acontece que não sabemos interpretar tudo isso porque a cultura ancestral foi silenciada.
Refletir assim é um exercício de autoconhecimento. É muito importante para a retomada da nossa essência e da nossa ancestralidade."
Luiza Brasil, de Niterói (RJ), comunicadora, empresária e produtora de conteúdo do Mequetrefismos
"Ter referência de ancestralidade é transformador"
"Fiz um curso de gineterapia [terapia alternativa de cuidados com a mulher], mas não me via representada porque era um grupo predominantemente formado por mulheres brancas. Estava em um processo contrário, de me atrair pelos ensinamentos de África, que eram muitas vezes embranquecidos. Então, me recomendaram o livro e criei o Instagram em 2019, primeiro com o nome Ancestralidade Africana. Queria levar o ensinamento de Sobonfu de forma acessível.
Para quem cresceu com poucas referências de ancestralidade anterior à colonização, esse conhecimento é transformador. Como pessoas negras, fomos destroçados nas nossas relações. Mas o que vejo nas rodas de conversa é que a questão da comunidade não é algo que está perdido: nós acessamos isso, nas favelas, nas famílias e nas comunidades."
Renata Lima Mendonça, de Sete Lagoas (MG), criadora da página Reconstruindo a Intimidade no Instagram
"Nas brigas, é fundamental dar importância aos sentimentos ruins"
"Um dos ensinamentos do livro é nos olhar profundamente, perceber quem veio antes de nós e como a conexão com eles nos ensina. Na pandemia, consegui entrar em um processo de introspecção com ele.
O que gosto é que Sobonfu nos propõe a acolher nossos sentimentos, dar importância quando afloram sentimentos ruins, raiva durante uma briga com o companheiro. Sem ter um julgamento sobre eles, como a gente aprende na nossa cultura.
Acho curioso que na contracapa dele há uma citação de elogio feito pela Clarissa Pinkola Estés [psicanalista norte-americana que escreveu o livro "Mulheres que correm com os lobos", popular entre feministas], uma autora que também adoro. Mas Sobonfu ainda é desconhecida. Há um preconceito generalizado de que os povos africanos ainda estão no século 15, que não têm coisas ricas para mostrar, como o texto de Sobonfu.
Eu mesma estou em um processo de fortalecer cada vez mais minha identidade afro. Por isso, ela me ajudou com o sentimento de inadequação que sempre tive com os valores brancos e europeus praticados no nosso dia a dia".
Elis Teixeira, de São Paulo (SP), doula e participante das rodas de leitura no perfil Reconstruindo a Intimidade
Três lições da filósofa sobre relacionamentos
Os relacionamentos e a espiritualidade
- Para a autora, todos os relacionamentos têm uma dimensão espiritual. As pessoas, assim, só se encontram porque há um propósito que as quer juntas. "Quando povos tribais falam de espírito, estão, basicamente, referindo-se à força vital que há em tudo", explica no capítulo "Uma canção do espírito".
A importância da comunidade
- Um dos preceitos do povo dagara diz que é necessário que a comunidade sirva como um grupo de apoio e de partilha. "A ausência de uma verdadeira comunidade deixa o casal totalmente responsável por si e pelas coisas à sua volta. Assim, a possibilidade de atender suas necessidades fica reduzida", alerta a filósofa em "O abraço da comunidade".
Rituais ajudam a aflorar as emoções
- Para ela, o conflito entre os casais é resolvido de forma mais eficiente se forem feitos rituais, que conectem os envolvidos a seus ancestrais. "É muito difícil resolver intelectualmente as emoções. A mente não sabe como sentir, sua lógica não pode satisfazer o desejo do coração", aponta no capítulo "Ritual, o chamado do espírito".
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