Pornografia feminista existe? Pesquisadoras e profissionais da área opinam
As plataformas de filmes pornôs vêm atingindo recorde de acessos desde o início da pandemia. E o Brasil sai na frente. Enquanto o mundo registrou aumento de 18% de março a julho de 2020, por aqui a taxa foi de 40%. Os dados são do último relatório do Pornhub, streaming de filmes adultos.
Há uma discussão sobre quão prejudicial o pornô é para mulheres por, por exemplo, objetificá-las e estimular a violência sexual. Não é nova. Mas, neste momento de aumento do consumo desses filmes, parece ainda mais urgente. É possível fazê-los de maneira diferente? Há quem diga que sim. E aí começa outra discussão: a pornografia pode ser feminista?
Diretora de filmes eróticos mais famosa do mundo, Erika Lust, levantou essa bandeira no começo da carreira mas, hoje, prefere dizer que é uma feminista fazendo pornô. "No fundo, são apenas palavras que usamos para nos diferenciar do 'mainstream'", afirmou. Ainda que não use o conceito abertamente, acredita que é possível conciliar o ativismo em favor das mulheres com seu trabalho.
Há muitas maneiras de ser feminista. Ao defender a ideia de que é preciso mudar a representação feminina nas telas e ter mais mulheres no processo de produção, se está defendendo os valores do feminismo
Brasileiras que se aventuraram na área também acreditam que é importante usar esses valores para criar um novo tipo de conteúdo adulto. E chamá-lo, por que não?, de feminista. "Há uma mudança porque nos preocupamos com o roteiro, para que não agrida nenhum gênero ou grupo social. O tratamento dado a atrizes, atores e outros profissionais envolvidos também muda, há mais respeito", afirma Vitória Schwarzelühr, também conhecida como Dread Hot, atriz e diretora pornô.
Para ela, as críticas ao pornô feminista deveriam dar lugar à intenção de "mudar o sistema por dentro". "Não é a pornografia que é prejudicial, é o homem que quer dominar o gênero que faz mal a nós dentro do mercado adulto."
Diretora e produtora executiva de filmes pós-pornô, termo usado para se referir a um modelo de filmes adultos menos artificial que os tradicionais, Livia Cheibub também acredita na possibilidade de fazer conteúdo de acordo com o feminismo.
O problema desse rótulo, 'pornô feminista', é que vem com outro, o de pornô ético, e dentro disso ainda vemos muitos diretores, produtores e produtoras que podem não fazer produções éticas mas se aproveitam desse termo
Entre estudiosas do movimento, a divisão entre "sim" e "não" é mais acentuada. Universa conversou com duas mulheres, ambas feministas, militantes e pesquisadoras na área da pornografia. Leia abaixo.
"Se a mulher se declara feminista e faz pornô, ela ainda explora outras mulheres"
"Não existe pornô feminista. Não há uma maneira de fazer esses filmes que seja menos degradante para as mulheres. Se a pessoa se declara feminista e faz pornô, ela ainda está explorando outras mulheres, o direito delas sobre o próprio corpo, sobre o sexo. Não há nada de ético nisso.
Fazer imagens próprias ou de outra pessoa de maneira consensual, sem comercializar, é uma coisa. Mas a indústria faz dinheiro com corpos femininos. Não estou falando da imagem do sexo por si só, mas de industrializar. Ainda é o capitalismo distorcendo a noção do que é sexo.
O pornô sempre será prejudicial porque é produzido e consumido a partir da violência de gênero. É construído na exploração feminina, uma vez que explora as mais vulneráveis, as coloca em situações degradantes. Não é uma escolha livre de uma atriz trabalhar no meio, é resultado de opressão.
Não acho que seja possível extinguir a pornografia. Mas os governos precisam regulamentar. Criar leis para, por exemplo, impedir a violência contra as mulheres nos sets de filmagem, garantir que crianças não terão acesso a esse tipo de conteúdo, obrigar os sites a retirar imagens de mulheres imediatamente quando o uso não for autorizado.
Ainda assim, continuará mandando uma mensagem que legitima a misogonia. Os homens que consome esse conteúdo precisam sempre aumentar a intensidade das ações para sentir algo, e isso escala para a agressão. Os filmes adultos legitimam a mulher como objeto e glorificam a violência contra ela." Gail Dines, professora emérita de sociologia e estudos femininos na universidade Wheelock, em Boston. Especializada no estudo da indústria pornô e fundadora da ONG antiporonografia Culture Reframed
"Acredito na política do prazer: se dar prazer é se dar valor"
"Quem diz que não há pornô feminista entende que há, na nossa sociedade, um desequilíbrio de poder entre homem e mulher tão amplo que passa também pela sexualidade. E, por isso, mesmo que a mulher ofereça seu corpo, estará seguindo uma lógica opressora.
Esse é um pensamento preconcebido que entende que as mulheres só estarão libertas quando quebrarmos o patriarcado. Também acho que há desequilíbrio de poder entre os gêneros. Mas discordo da estratégia para acabar com isso. Entendo que fazer filmes adultos pela ótica feminista é um caminho.
O pornô tradicional segue um pensamento muito masculino, por ser produzida por homens, na maioria dos casos. Então tem a lógica de dominação, de ver a mulher não como parceria, mas objeto de cena. Isso, por si só, já é uma violência. Mas se a gente consegue transar de maneira não agressiva e sexista, também dá para fazer conteúdo erótico assim. Existe um público feminino interessado nesses filmes, e não é só no sentido mercadológico. Diz respeito também à produção de um imaginário
Para o homem, o direito à sexualidade sempre foi livre. Mas a mulher precisa se 'comportar'. Essa lógica do limite nós levamos para várias partes da vida
É importante recuperar esse direito à própria sexualidade. Sexo deve ser diversão, não é só ter um sentido romântico. Pode ser simplesmente algo para trazer felicidade. Acredito na política do prazer. Se dar prazer é se dar valor." Léa Menezes de Santana, pesquisadora do Núcleo em Cultura, Gêneros e Sexualidades da UFBA (Universidade Federal da Bahia), com mestrado na área de pornô para mulheres e doutorado em andamento sobre o mesmo tema
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