"Escrever me ajudou a superar relação abusiva e culpa pela morte do meu ex"
"Vivi um relacionamento abusivo por 13 anos. Quando consegui dar um ponto final, sete meses depois da separação definitiva, em 2019, meu ex-marido invadiu o condomínio em que eu morava, armado. Deu um tiro em mim e depois se matou. Eu me considero uma sobrevivente e, por isso, resolvi escrever um livro, que se chama 'Eu Escolhi Viver'. Quero mostrar para mulheres que estão passando por relações violentas que é possível sair, buscar apoio e recomeçar.
Escrevi com ajuda da minha terapeuta, Rose Rech. O livro foi também uma tentativa de me livrar da culpa: embora não devesse, eu me culpava pela morte do meu ex. O tratamento intensivo que passei, durante a escrita, foi libertador.
O relacionamento abusivo começa teoricamente dentro de uma relação saudável. Geralmente, o homem começa xingando. Você ouve um 'vagabunda', se assusta, mas ouve outras vezes. Infelizmente acostuma. Ele te dá um tapa, em um acesso de raiva e você não percebe os sinais. Vêm um choro, um arrependimento dele, que você acredita que aquilo vai mudar
Durante esse tempo, sabia que aquilo vinha se repetindo na minha vida, mas não era normal. Só que, quando percebi, já havia se passado 13 anos. Por isso que digo, hoje, que o importante é, na primeira agressão, não ter perdão. Mas, eu nunca fiz um boletim de ocorrência contra ele, por exemplo.
"Não foi uma briga, foi uma surra"
Imagino que tenham acontecido outras vezes, mas a primeira agressão que me marcou foi quando abriu minha testa, depois de um empurrão dele. Meu ex-marido tinha acabado de acordar e sempre estava de mau humor, tinha uma autoestima bem baixa. Era muito gordo; depois que fez cirurgia bariátrica, melhorou um pouco.
Eu tinha 22 anos e ele, 32. Naquele dia, eu limpava a casa e pedi para ele fazer o almoço para nossos filhos. Meu ex-marido resolveu fazer só um pouco de macarrão, para um deles. E eu joguei o macarrão da panela fora, porque era de um tipo diferente e queria fazer um que todo mundo pudesse comer igual.
Ele se enfureceu. Pegou a panela, jogou na parede e começou a me bater. Aquilo não foi uma briga, foi uma surra. Quando passei por ele, levei um tapa forte na cabeça e bati o rosto na mesa que tínhamos. Começou a sangrar muito
Peguei meus filhos, coloquei no carro e fui para o hospital. Chegando lá, inventei uma mentira para a enfermeira. Mas, quando o médico me viu disse que só daria os pontos na minha testa se contasse a verdade.
Contei para ele e o hospital chamou a polícia. Eles me disseram que poderiam ir antes da minha casa, levá-lo, para quando eu chegasse não o encontrasse mais. E eu não dei queixa.
Em janeiro, o Ministério da Saúde publicou portaria com orientações para a notificação compulsória à polícia nos casos de violência contra a mulher atendidos em serviços de saúde públicos e privados. Não há consenso sobre o tema entre especialistas.
Apesar disso, ficamos separados seis meses naquela época. E não tive paz em nenhum dia. Para mim, era melhor voltar do que ficar separada, ele me perseguia.
"Não contava para ninguém o que sofria"
Conheci meu ex em uma festa, eu era vendedora e ele também. Animado, festeiro, sempre teve um ímpeto de briga, no entanto. Por isso, terminei a relação um milhão de vezes, porque a gente sempre brigava. Tivemos dois filhos, uma menina, que hoje tem 15 anos, e um menino, de 13.
No começo, algumas vezes ele me trancava em casa. Ainda assim, eu era independente, tinha meu carro, meu trabalho... Com o tempo, ele até aceitava que viajasse com minhas amigas.
Quando era criança, via nos casamentos que a mulher tinha que ser a quieta, ficar em casa enquanto o cara era quem saía do trabalho e ia direto para o bar. Como eu não me encaixava nisso, me sentia errada. Então, pensava que tinha que perdoá-lo, porque 'ele me perdoava por sair'. É como se a gente se acostumasse com a parte ruim, para compensar essa parte 'boa'.
Eu não contava para ninguém que apanhava. Tinha vergonha. A única vez foi quando abri a testa: liguei para falar com a mãe dele e ela ficou muito brava com o filho. Algumas amigas viram as agressões, algumas pessoas da família não acreditavam
Sei que apanhei muito. E que, infelizmente, existem muitas Yannahes por aí. De todos os tipos: eu era a 'fodástica', tinha dinheiro, mas tinha vergonha. Quem não tem condições às vezes também sente vergonha, de ligar para a mãe e pedir ajuda, dizer que está sofrendo com agressões. O que queria é que as mulheres entendessem que uma vizinha, alguém da rede do trabalho pode ajudar. Que elas vão conseguir cuidar dos filhos, sim. Que acreditem nelas e não tenham vergonha de gritar socorro.
"Depois do atentado, guardei meus sentimentos em um potinho"
Depois de ele ter dado um tiro em mim [a bala do revólver usada na tentativa de feminicídio entrou pela nuca, ricocheteou na testa e se partiu em três no corpo de Yannahe; ela permanece alojada na região] precisei fazer bastante fisioterapia para recuperar os movimentos do pescoço e da mão. Quanto aos sentimentos, eu neguei ajuda da terapeuta por muito tempo. Coloquei tudo em um potinho, por achar que iria me reconstruir assim. Mas, estava indo ladeira abaixo.
Foi quando me deu vontade de escrever o livro. E como conhecia o pessoal da editora, me sugeriram que tivesse o acompanhamento da minha terapeuta. De algumas coisas, tenho quase zero de memória. Mas, hoje, posso falar pelas mulheres agredidas que é surreal a culpa que carregamos por apanhar.
Tenho agora uma bebê de 11 meses também, de um novo relacionamento. E fico pensando que a geração da minha filha mais velha vai cortar o mal pela raiz. Vão dizer que não apanharão nenhuma vez. Por outro lado, vejo que no caso dela há uma revolta muito grande com homens, inclusive por tudo que ela viu. Então, penso que educação emocional deveria ser ensinada na escola, para meninos e meninas. E a luta feminista deveria ser para elas não apanharem e os meninos não baterem."
Terapeuta: "Pelo machismo, mulheres se colocam como culpadas"
Para a terapeuta que colaborou na escrita do livro "Eu Escolhi Viver", o caso de Yannahe é um exemplo de como o machismo e o patriarcado dificultam que mulheres reconheçam o lugar de vítima em situações de violência doméstica.
"Ela não via como relacionamento abusivo, quando nos conhecemos. Inclusive, se colocava como responsável pela morte dele. Estamos trabalhando para mostrar que ela não tem essa responsabilidade.
Além disso, resgatamos as vivências do casamento, porque tem muita coisa que ela não lembra e não sabemos se foi por causa do tiro ou por uma questão psicológica. Até porque Yannahe tinha a ideia de que quando não era no rosto ou não deixava marca física, não era agressão", explicou a terapeuta para Universa, com consentimento de Yannahe, que também participava da entrevista.
"Nós somos criadas com a ideia de que a mulher não pode reagir, sustentada pelo machismo e pelo patriarcado. Então, nos colocamos como culpadas, sem amor próprio, pensamos que não arrumaremos outro parceiro... Não acreditamos que podem viver de outra forma. Eu mesma vivi um relacionamento abusivo quando tinha 19 anos e hoje vejo que foi 'fácil' sair dele. Mas a Yannahe me ensinou também pode ser difícil."
Vítima de violência doméstica? Como pedir ajuda
Há canais nas esferas municipal, estadual e federal, além dos organizados por entidades que lutam pelo fim da violência contra a mulher que podem ser acessados pelas vítimas. Se for possível sair de casa, procure Delegacias da Mulher e as Casas da Mulher Brasileira, nas capitais onde existem. Por telefone, há duas opções: o número 180, serviço telefônico do governo federal, funciona como um disque-denúncia e também orienta sobre os equipamentos e horários de funcionamento das políticas públicas.
Já o 190, da Polícia Militar, atende em caso de emergência, violência física ou sexual. Essa denúncia também pode ser feita por parentes, vizinhos e amigos, inclusive de forma anônima.
Sobre o livro
"Eu Escolhi Viver: Conheça a História que a Medicina Não Conseguiu Explicar" (editora Citadel) é de autoria de Yannahe Marques e Rose Rech e está à venda em e-book (R$ 31,90) e no formato físico (R$ 49,90).
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