Ministério da Saúde quer restringir acesso ao aborto legal por telemedicina
O Ministério da Saúde emitiu uma nota informativa desautorizando o serviço de aborto legal por telemedicina que vem sendo realizado com autorização da Justiça desde agosto em mulheres com até nove semanas de gestação. No Brasil, a interrupção da gravidez é autorizada nos casos de estupro, anencefalia (ausência de cérebro) do feto e risco de vida para a gestante.
A pasta questiona, entre outros pontos, os efeitos e o fato de o medicamento abortivo com controle especial usado no procedimento à distância estar sendo dado às pacientes fora do hospital. Porém, portaria atribuída ao próprio órgão e à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de agosto de 2020, liberou outros remédios controlados ministrados em hospital para uso em casa na pandemia, mas nenhum foi alvo do mesmo tipo de questionamento.
O documento é assinado por três médicos do ministério, mas não há nenhuma referência científica listada como fonte para os argumentos apresentados, tampouco dados específicos sobre riscos, constantemente repetidos. Além disso, traz informações equivocadas sobre a maneira como o procedimento vem sendo realizado até agora.
O teleaborto funciona da seguinte maneira: a mulher com até dois meses de gestação faz a primeira consulta médica presencialmente e, após exames e avaliação clínica, recebe a medicação que induz o aborto para ser tomada em casa. A partir do momento em que deixa o hospital com todas as orientações, ela passa a ter acompanhamento profissional 24 horas por dia pelo telefone. Após a realização do procedimento em casa, é realizada uma consulta médica remota para saber como a paciente está.
Por enquanto, o serviço está sendo realizado apenas pelo Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual), da UFU (Universidade Federal de Uberlândia). A ginecologista e obstetra Helena Paro, que está à frente da iniciativa, afirma a Universa que nenhum dos 17 abortos legais por telemedicina realizados até agora apresentou as complicações citadas na nota do Ministério da Saúde. "Seriam necessários pelo menos 10.000 casos para haver um efeito adverso, de acordo com as taxas apresentadas pelos estudos", diz a médica.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu às questões sobre as imprecisões da nota e não informou quais estudos foram usados como base para o documento. Informou que a nota "orienta o profissional de saúde a não fazer uso da telemedicina nos procedimentos para aborto por excludente de ilicitude, considerando que a paciente deve ser acompanhada, obrigatoriamente, por um médico no hospital". Não há, porém, indicação anterior sobre obrigatoriedade de tratamento em hospital.
A pasta também informou que emitirá, em breve, uma nota técnica restringindo ainda mais o acesso a um direito das mulheres já garantido pela Justiça.
"Foco deve ser ampliação do serviço, não restrição", diz defensora pública
A manifestação do Ministério da Saúde se deu após um embate dentro do MPF (Ministério Público Federal) e da DPU (Defensoria Pública da União).
Em maio, o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero Anis, o Nuavidas e a ONG Doctors for Choice Brasil elaboraram uma cartilha com orientações para profissionais implementarem o aborto por telemedicina em mais serviços de saúde. Tanto a cartilha quanto a iniciativa já implementada no Nuavidas têm amparo legal, uma vez que teve funcionamento autorizado pelo MPF, e científico, com respaldo do Conselho Regional de Farmácia de Minas Gerais.
Na sequência, o defensor nacional dos Direitos Humanos, André Ribeiro Porciúncula, e o procurador Fernando de Almeida Martins, do MPF em Minas Gerais, enviaram um pedido ao ministério, à Anvisa e ao CFM (Conselho Federal de Medicina), para que o serviço fosse interrompido e os profissionais envolvidos, investigados.
"Fomos surpreendidas por essa recomendação", afirma a defensora pública Alessandra Wolff, coordenadora do Grupo de Trabalho Mulheres da DPU. "Nosso grupo é o que debate esse tema, que discute direitos das mulheres e age pela proteção da população feminina, mas sequer fomos consultadas. Não houve diálogo", afirma.
Alessandra e outros 40 profissionais, incluindo 13 dos 17 defensores regionais de Direitos Humanos do país, enviaram, então, outra recomendação ao Ministério da Saúde e ao CFM argumentando pela manutenção do serviço de aborto por telemedicina. Mas o MS se posicionou em favor da recomendação anterior a essa.
"Somos a favor de ampliar o acesso ao procedimento por essa modalidade. É um direito da mulher e um dever do Estado que não está sendo cumprido. Muitas vítimas de violência sexual não conseguem ir até um hospital para realizar um aborto garantido por lei. Estão desassistidas", diz Alessandra, que considera a posição do Ministério da Saúde um risco para os direitos das mulheres. "A cada manifestação contrária, vai ficando mais difícil o acesso."
A DPU foi procurada sobre a situação, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. O MPF em Minas Gerais também foi procurado para comentar os posicionamentos divergentes em relação ao tema. Afirmou, em nota, que "os procuradores da República, no exercício das suas atribuições, regem-se pelo princípio da independência funcional, ou seja, cada um deles tem liberdade para atuar conforme suas convicções jurídicas, no âmbito de suas respectivas atribuições. Eventuais conflitos, quando ocorrem, devem ser resolvidos pelos órgãos internos competentes."
"Risco de morte em parto não prematuro é maior do que em aborto seguro", diz pesquisadora
Advogada e pesquisadora da Anis, Gabriela Rondon, que participou da formulação da cartilha, afirma que uma das orientações seguidas no serviço de aborto por telemedicina é a mesma apontada como exigência pela nota do Ministério da Saúde, mas citada como se não fosse cumprida, a do atendimento multidisciplinar, envolvendo assistente social, psicólogo, entre outros profissionais.
"O MS usa critérios equivocados. Dizer que não há equipe multiprofissional, por exemplo, é falso", afirma Gabriela. A nota ainda afirma que o serviço não estaria de acordo com a portaria sobre aborto previsto em lei emitida em agosto de 2020 e, portanto, não teria validade. "A portaria exige um procedimento de quatro etapas, que consiste, entre outros pontos, em verificar se a idade gestacional é adequada ao procedimento e exigir que a mulher assine determinados documentos. Isso continua sendo seguido, não faz sentido essa contestação."
Gabriela ainda ressalta que o risco de morte em um aborto seguro é menor do que em partos não prematuros. Segundo o estudo publicado na revista científica americana "Obstetrics and Gynecology" ("Obstetrícia e Ginecologia", em tradução livre) em 2012, partos apresentam risco de morte 14 vezes maior do que procedimentos de interrupção de gravidez. "O que é inseguro, neste momento, é restringir o acesso a um direito e colocar mulheres em risco", diz.
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