"Ouvi que meu cabelo cacheado era muito volumoso para a vaga de trabalho"
"Sou modelo e trabalho há três anos em eventos que, muitas vezes, têm oportunidades anunciadas em grupos de Facebook e no WhatsApp. Me coloquei à disposição para uma vaga de recepção em um restaurante por lá. E, ao falar com um dos responsáveis pela seleção das modelos, sofri pela primeira vez um caso de racismo explícito pelo meu cabelo.
Ele perguntou sobre mim, questionou se eu tinha experiência na área, se trabalhei com público 'A' e qual era minha altura. Então, recebi um áudio assim:
Tem que ser uma menina rápida para levar o pessoal até a mesa. Tem que ser sorridente. Você é perfeita. Só que o que você consegue fazer nesse cabelo, para ele diminuir um pouco o volume, o tamanho? Você entende minha pergunta? Porque não dá para colocar chapéu nem boné. É lindo seu cabelo, combina com você. Tudo certo. Mas eu estou vendo para aquela casa, entendeu? Horário de almoço, de dia... A gente precisa ter uma coisa mais discreta. Não sei se você está entendendo o que eu quero dizer.
Na hora, não sabia como reagir, senti dor, ódio, uma sensação que ninguém gostaria de sentir. De parecer inferior... Veio uma dor que não era só daquele momento, mas que estava sendo carregada por mim há um tempo.
Sempre vi vários depoimentos, matérias, casos de quem é vítima de racismo. Também já percebi olhares para mim, ouvi piadinhas sobre o cabelo. A gente acha que está preparado, mas, quando ouvi o que ele mandou, comecei a chorar. Ele falou que entraria em contato depois sobre a vaga e a conversa se encerrou por aí.
Resolvi publicar o áudio nos Stories do Instagram, porque ainda há pessoas que falam que racismo não existe. Há tantos meios de buscar informação! Elas precisam saber o que é discriminação. Por isso, quis levantar um debate sobre o tema. Não pretendo entrar na Justiça para isso, porque não é minha intenção ganhar dinheiro em cima do caso. Só quero o respeito das pessoas.
"Não tem como trocá-la por uma mulher branca?"
Depois que publiquei meu relato na rede social, muitas modelos negras vieram me dizer que já passaram por situações parecidas no meio. Uma delas ouviu um supervisor falando para outra pessoa: 'Não tem como trocá-la por uma branca?'; outra disse que foi alvo da fala: 'Não tem como você alisar o cabelo para vir trabalhar?'.
Na área de eventos, negros ainda são minoria. Em uma seleção com oito mulheres, por exemplo, no máximo duas são negras. Conheço muita gente que queria estar nessa área, mas acha que não tem portas abertas para conseguir trabalho.
Já quando faço fotos para lojas, publicidade, percebo que as empresas estão focando mais em diversidade. Pelo menos há uns dois anos. Então, além de negros, há também maior presença de mulheres plus size e de homossexuais.
Quando o cara da vaga entrou em contato comigo, ele sabia do meu perfil. Ele poderia ter falado que eu poderia colocar uma touca, se todas as outras pessoas usassem também, por ser um restaurante. Ou se teria algum problema em prendê-lo. Mas, não. Falou que era 'muito chamativo'
No meu perfil do Instagram, algumas pessoas brancas vieram me falar: 'Ah, mas era um restaurante'. Para alguns, respondi e outros, deixei para lá, porque não vou perder meu tempo. A gente cansa de falar sempre a mesma coisa.
'Cuido muito do meu cabelo natural; alisava desde os 10 anos'
Alisei meu cabelo por quase 15 anos. Demorei tanto para assumir minha identidade... E quando quero ter meus cachos, me libertar, vem alguém e fala isso. Ele ainda falou que era bonito, mas sempre tem um 'mas'. E ainda acha que não foi maldade.
Na infância, vivi cercada por amigas da escola que eram brancas com cabelo liso. Então, pedia para meus pais para alisar meu cabelo. Com uns 10 anos, comecei a fazer relaxamento, porque queria ele 'murcho'. Depois, passei a fazer progressiva.
Segui assim, até que comecei a ver blogueiras falando na internet sobre cabelos cacheados. Me perguntava por que não podia deixá-los naturais também, já que nem lembrava mais quais eram a espessura e a textura natural dos fios.
Usei trança para disfarçar as pontas lisas durante a transição capilar e cortei ele bem curtinho, 'blackzinho'. Hoje, cuido muito dele, com muita hidratação... O que gosto é que meus priminhos se inspiram em mim, dizem que querem ter o cabelo igual ao meu. Agora, eu sou o exemplo da família."
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