"Não vejo julgarem milicianos", diz juíza que prendeu Suzane Richthofen
"Estou há 30 anos ouvindo e vivendo o pior do ser humano." Assim a desembargadora Ivana David, juíza em segundo grau do Tribunal de Justiça de São Paulo, resume sua carreira. "Eu não fico mais chocada com nada." De líderes de facções a psicopatas, já passou de tudo por ela, principalmente quando esteve no comando do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais) em São Paulo.
A juíza foi a responsável por prisões notórias, como a do líder do PCC (Primeiro Comando da Capital), Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, e a de Suzane von Richthofen, assassina confessa dos pais. "Fico triste e sempre me sinto desafiada a entender a obscuridade da alma daqueles que praticam crimes", diz ela, primeira mulher a comandar a Corregedoria da Polícia Judiciária de São Paulo.
A Universa, Ivana conta como faz para manter o equilíbrio, em meio a um cotidiano cercado por crimes, tragédias e casos bizarros de todos os tipos. "Minha terapia é treinar; se estou cansada, corro, se estou triste, corro, se estou feliz, corro", diz. Ela afirma não abrir mão desse momento no qual diz repor as energias tragadas por processos e julgamentos sinistros. "Crime é um negócio muito pesado, tem um desgaste emocional."
Na entrevista a seguir, a magistrada fala que o número de feminicídios só diminuirá por meio da educação e também analisa o avanço das milícias no Rio. "Acho que elas são piores do que as facções. No caso da facção fica muito claro quem é o bandido e quem o mocinho, a milícia transita entre o Estado e o crime, o que é bem pior."
UNIVERSA - Da prisão de Suzane Richthofen, em 2002, ao recente assassinato do menino Henry Borel, estamos assistindo a uma escalada dos crimes familiares?
Ivana David - São inúmeros casos. Todos os dias um novo, infelizmente. Mas, vivemos hoje em uma sociedade que aprendeu os caminhos para buscar a justiça, em grande parte pela atuação de ONGs e da internet, que também chegou mostrando e contando tudo. Isso virou uma vitrine em que tudo é filmado e nada mais pode ser rasgado. Ou seja, esse número maior de crimes pode estar relacionado a investigações mais rápidas, por causa da adoção de novas tecnologias e de novos meios de informação. A gente tem mais conhecimento do que está acontecendo.
A pandemia talvez tenha trazido um ingrediente novo, colocando familiares mais próximos, vítimas e agressores agora estão dividindo mais o mesmo espaço. Mas a violência contra a criança, contra a mulher e de gênero sempre existiu. Cansei de ver gay apanhando na rua.
A violência contra a mulher também aumentou na pandemia. O que falta ser feito para coibir esse tipo de crime?
Educação. A falta de educação gera feminicídio. Vivemos em um país onde a ficha nunca cai. Somos signatários de várias convenções internacionais, de Viena, Budapeste, Palermo, e a principal bandeira desses tratados no que diz respeito à violência contra a mulher é a prevenção.
Eu atuo na ponta onde não deu certo, onde o crime já aconteceu, o desafio é trabalhar para que não aconteça. As pessoas precisam parar de achar que a violência é uma ferramenta para conseguir o que quer. Tem gente que mata porque ama ou porque odeia. Precisamos de uma sociedade de pessoas que valorizem a vida.
Você já sofreu muitas ameaças por causa do seu trabalho?
Sim, já tive que andar com segurança. Na época do Departamento de Inquéritos Policias, em que fui corregedora, recebi muitas ameaças. Já atravessei momentos complicados, por exemplo, quando determinei a prisão temporária do Marcola e da mulher dele. Começaram a chegar ligações falando que me matariam, que iriam metralhar a porta da minha casa, sabiam até da minha filha que tinha três anos de idade [que hoje tem 20], aí a coisa começou a ficar mais séria, tive até que fechar rua.
Qual a sua avaliação sobre as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018?
A Polícia Judiciária do Rio de Janeiro está muito empenhada, tem usado muitas ferramentas digitais de última geração nessa investigação, inclusive para a quebra de geolocalização, mas o problema é que a milícia [envolvida no crime] é parte do Estado, está presente em 72% do território do Rio de Janeiro e também dentro da polícia e do governo. Estranhamente, não vejo julgamentos de casos envolvendo milicianos. Tem também um jogo político, uma dança de cadeiras que só desestrutura e atrapalha as investigações.
Como você avalia a atual escalada das milícias no Rio de Janeiro?
As milícias que atuam no crime territorial, o Rio de Janeiro têm características geopolíticas muito específicas, tem os morros. Os milicianos estão avançando nessas áreas que eram do Comando Vermelho, as guerras por lá são por território. Só que a milícia não vende só droga, também oferece serviços, vende gás, internet, TV a cabo, casas, apartamentos. Todas as organizações criminosas só funcionam por meio da corrupção de agentes públicos, mas as milícias levam vantagem nesse sentido, porque sabem como o Estado funciona e usam isso para o mal.
Acho que elas são piores do que as facções. No caso da facção fica muito claro quem é o bandido e quem o mocinho, a milícia transita entre o Estado e o crime, o que é bem pior.
Como combater o crime organizado e a violência?
Temos um Estado que ainda insiste em não investir em inteligência, tecnologia, conhecimento, bons salários. Não bastam armas e viaturas, precisamos também de políticas públicas e de policiais com um olhar mais especial, mais preparado. A solução passa também pelos três pilares: educação, saúde e segurança.
Vivemos em uma sociedade muito vulnerável, que na hora da eleição troca voto por cesta básica. Quem se elege dessa maneira é claro que não vai trabalhar pelo bem comum. Por isso que temos hoje ministro achando um absurdo que uma pessoa menos favorecida vá para a Disney ou faça faculdade.
Quando escuto isso, eu penso 'putz, desci no ponto errado'. O que mais me choca é a naturalidade com que falam esse tipo de coisa. Eu imagino o que vai ser essas eleições do ano que vem.
A desigualdade social é um ponto crucial para a conduta criminosa?
As pessoas precisam ter chance de escolha. Já encontrei muito criminoso que, ao ouvi-lo em um interrogatório, onde ele faz um 'déjà vu' da vida dele, fica evidente que não teve chance nenhuma na vida. Muitas vezes eles crescem em barracos de comunidades em territórios de extrema violência, ao sair de casa para ir à escola têm que pular um cadáver. E não vão para estudar, mas para comer, porque não tem comida onde vivem. Não estou dizendo que isso justifique o crime, mas a pergunta que vem é: 'cara, como você chegou até aqui?'. Muitas pessoas vão sendo empurradas pela vida até se tornarem um adulto que não tem espaço na sociedade, que não encontra trabalho. O desafio do Estado hoje é quebrar essa engrenagem.
Quais foram os principais obstáculos no início da sua carreira?
Quando assumi há 15 anos a Corregedoria da Polícia Judiciária de São Paulo, com mais de dois mil delegados e mais de dez mil presos, fui a primeira mulher a ocupar esse lugar. Não sei exatamente o que a sociedade espera de um juiz, mas com certeza não era muito o meu estereótipo.
Atendia a todos que me procuravam, mas, no começo, a maioria não acreditava que eu era a juíza, achavam que eu era a secretária. Aconteceu até em presídios, tive que ir a muitos, às vezes para inspeções ou por exigência dos próprios detentos em situações de conflito, tinha que ir lá negociar. E a pergunta era geralmente a mesma, 'quando o juiz chega?'.
Mas nunca tive problema com isso, fui quebrando aos poucos essa resistência, com paciência e elegância.
Nessas visitas aos presídios como era sua relação com os detentos?
Já entrei em muitos presídios e sempre procurei ouvir a todos, por isso nunca tive problemas de desrespeito com a massa carcerária. Saía com pilhas de cartas, nessa época não tinha internet, chegava em meu gabinete e respondia a todas com ajuda da minha equipe, claro.
E assim fui ganhando respeito, não porque eu era legal, mas por tentar ser justa.
Quando eu era corregedora, não existia CDP (Centro de Detenção Provisória), o sistema prisional não era do tamanho que é hoje, com 170 presídios, presos respondiam processos e cumpriam penas em distritos policiais, como o 33º DP de Itaquera, na zona leste de SP. Onde cabiam 30 pessoas, tinha 300 presos. Em uma visita ao local encontrei um mar de homens, todos de cueca e de cócoras, porque se alguém levantasse faltava espaço. Isso foi no início da década de 1990, quando nascia o PCC (Primeiro Comando da Capital) com sua teoria da luta contra a opressão do Estado. E chegou mostrando força. Logo começaram a aparecer os primeiros presos degolados, sem língua, sem coração. Ninguém me contou, vi com meus próprios olhos.
Por que o PCC cresceu tanto?
Falo com muita intimidade sobre crime organizado porque vi o PCC nascer dentro dos presídios de São Paulo. A organização surge com uma bandeira, tem um estatuto que oferece proteção aos presos e a suas famílias, avançou onde o Estado falhou, isso é um fato. O Marcola era homicida, sequestrador, roubava banco, não tinha nada a ver com a facção, mas é um homem articulado. E quando ele foi levado para o presídio de Tremembé [no interior de SP] começa a conversar com os últimos presos políticos no sistema prisional e aprende com eles sobre como estruturar o tráfico, a gerenciar como uma empresa, ao mesmo tempo em que vende internamente para os detentos a ideia de uma irmandade revolucionária. Hoje, após invadir o Paraguai, o PCC virou uma organização transnacional que vende drogas para África e Ásia.
Eles começaram copiando os modelos da máfia, com esse discurso de família, se chamam de irmãos, mas, na prática, é uma empresa criminosa de fundo de quintal que deu certo. E acabou engolindo outras facções, como o Comando Vermelho. O PCC já está fazendo batismo de detentos no sistema prisional do Rio de Janeiro.
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