Mães apoiam homeschooling: "Ninguém tira filho da escola para ficar burro"
Em abril de 2019, a economista Bianca Vasconcelos, de 40 anos, participou de uma excursão para Brasília. Ela viajou 1500 km de ônibus desde Cascavel, no interior do Paraná, até a capital federal com outras famílias que, assim como ela, são adeptas do ensino domiciliar ou homeschooling. A modalidade é diferente do ensino à distância porque não conta com a escola ou professores, são os pais que decidem o que e como as crianças vão aprender.
Na viagem, ela levou os dois filhos, de 12 e 10 anos, e uma bolsa cheia de materiais escolares. "Levei a bandeira do Brasil para estudar os estados. Nos dois dias na estrada, eles foram aprendendo o que era a Câmara, o Senado. Eu não podia perder a oportunidade, né?", conta Bianca, adepta do homeschooling desde 2014, a Universa.
O grupo que estava com Bianca participou do lançamento da Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling. Organizadas, milhares de famílias pressionam pela aprovação do projeto de lei que regulamente o ensino domiciliar no Brasil. Hoje, quem pratica o homeschooling pode ser denunciado ao Conselho Tutelar por abandono intelectual — deixar de prover instrução primária à criança em idade escolar. A pena prevista é de detenção de 15 dias a 1 mês, ou multa.
Mãe de uma menina de 4 e de um menino de 2 anos, a mestre em saúde pública Claudia Maia, de Belo Horizonte (MG), decidiu adotar o ensino domiciliar na pandemia. Ela, que está estudando pedagogia, critica o atual modelo de educação nas escolas. "A maioria das escolas adotam fileiras de cadeiras uma atrás da outra. Os meninos não veem a cara um do outro, não interagem e ficam lá ouvindo o professor. Isso é de um empobrecimento muito grande", diz.
O projeto de lei (PL) da deputada Luísa Canziani (PTB-PR), em discussão no Congresso, encontra resistência de grande parte de especialistas de educação e foi colocado como uma prioridade do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
A proposta prevê alguns controles para a prática do ensino domiciliar, como a obrigação de seguir o currículo nacional, a exigência de que os pais tenham formação superior e que os alunos passem por avaliações anuais — se forem reprovados por dois anos consecutivos, não poderão mais ser ensinados em casa. Os estudantes também precisam estar matriculados em alguma instituição de ensino, seja pública ou particular.
No último dia (10), a deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) conseguiu aprovar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara outro PL relacionado a homeschooling que pede mudança no Código Penal para que os pais adeptos desse sistema não possam ser penalizados criminalmente por abandono intelectual, como ocorre hoje. O projeto ainda precisa ser votado pela Câmara e pelo Senado.
"Causa desconforto ver esse projeto ser colocado como prioridade quando não há um empenho tão grande para resolver os problemas urgentes da educação", diz a professora Maria Celi Chaves Vasconcelos, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Pesquisa feita pela Aned (Associação Nacional de Ensino Domiciliar) apontou que, em 2018, havia 7.500 famílias adeptas da educação domiciliar no país. Com a pandemia, o diretor de relações institucionais da associação, Carlos Vinícius Reis, acredita que o número triplicou. "Muitos pais perceberam que poderiam conduzir eles mesmos esse processo", afirma.
Universa conversou com três mães que ensinam os filhos em casa para entender por que elas adotaram essa modalidade e como essa regulamentação pode afetá-las.
"Ninguém tira filho da escola com intenção de que ele fique burro"
"Ensino meus dois filhos, de 12 e 10 anos, desde 2014. O meu mais velho nunca gostou da escola, tem bastante dificuldade de aprendizagem e uma baixa autoestima. Depois de tentar resolver isso com a escola e não conseguir, pedi demissão do trabalho. A ideia era estar meio período com ele, mas aí começamos o homeschooling e outras famílias foram se agregando.
No início, criamos círculos para troca de livros, projetos coletivos de ciência, visitamos museus, estudamos inventores... Eram coisas coletivas, mas estruturadas com a ajuda de uma amiga pedagoga. E esses círculos nos deram confiança de que a gente poderia fazer um bom trabalho.
Temos gastos com uma plataforma de aulas de inglês, livros e brinquedos educacionais. Hoje a mensalidade da escola em que eles estudavam está em torno de 2 mil reais, jamais teria condição de pagar isso.
Eu acho que com o homeschooling as crianças podem desenvolver mais ainda habilidades que já têm. Meu filho ama livros e lê muito mais que outros que estão com conteúdo muito denso. As crianças não têm paciência para ler porque estão cansadas de tanto assunto. E, no final, as faculdades formam pessoas que são analfabetas funcionais. Alguma coisa está errada.
Eu não quero filhos analfabetos. Eu quero filhos que saibam se articular. Os meus são super sociáveis. Onde a gente chega eles não têm dificuldade de falar com velhinhos, crianças e adultos. Eles desenvolvem e articulam ideias. Por isso, vejo muitos benefícios na educação domiciliar.
Ninguém tira o filho da escola com intenção de que ele fique burro e alienado em casa né? Quem critica o homeschooling diz que a escola protege as crianças dos pais. E as atrocidades que acontecem na escola? Quem protege as crianças?
Nós somos cristãos, meu esposo é filho de pastor. Mas mesmo os cristãos são os que mais nos recriminam porque desconhecem o homeschooling. Eu achava que a primeira pessoa que iria me processar seria minha sogra, que é professora. Mas aí ela foi vendo que as crianças estão aprendendo.
Tudo que é diferente as pessoas têm mais receio. Mas quando veem que as crianças são normais, que estão no ambiente de aprendizagem, estão estudando, vão caindo os preconceitos.
O homeschooling é para quem puder, quem quiser, não queremos que seja o único modelo de educação. É um modelo para uma minoria, porque a maioria das pessoas precisa trabalhar fora. Aqui em casa a gente abriu mão de muitas coisas. Muitos luxos que poderia ter eu não tenho porque parei de trabalhar e me dedico à formação das crianças. Temos bastante expectativa que a lei saia."
* A economista Bianca Vasconcelos, 40, de Cascavel (PR), adotou a educação domiciliar para os filhos de 12 e 10 anos desde 2014
"Sei que é privilégio, fico cansada, mas satisfação é maior"
"Eu sou formada em biologia, cristã, morei três anos em Moçambique e trabalhei em uma missão com saúde pública e educação. Depois que voltei ao Brasil, fiz um mestrado nessa área e comecei a dar aula de religião em uma escola particular. Nessa experiência, comecei a reviver muitas coisas da minha escola e do modelo escolar que me desagradavam profundamente.
Quando fiquei grávida, comecei a pensar que não queria colocar minha filha nesse modelo de escola. São muitos professores, muitas matérias e a base da educação é o vínculo — ou deveria ser, né? Está na base da educação, mas a gente foi perdendo isso.
Eu sempre fui contra o homeschooling, tinha um pé atrás, porque achava que ia privar a criança de uma educação ampla. Achava que ia restringir o acesso às demais camadas da sociedade, que eu não daria conta e nem teria conhecimento suficiente. Eu já estudava pedagogia e, quando veio a pandemia, o ensino remoto não fazia sentido para minha filha de quatro anos. Combinei com meu marido que faríamos uma tentativa pelo menos até o fim de 2021.
Eu gostei muito da liberdade do homeschooling. Liberdade de currículo, de tempo. A maioria das escolas adotam fileiras de cadeiras uma atrás da outra. Os meninos não veem a cara um do outro, não interagem e ficam lá ouvindo o professor. Isso é de um empobrecimento muito grande.
Apesar disso, eu tenho uma dificuldade com o pessoal do homeschooling, porque a maior parte deles é de direita — e, infelizmente, grande parte bolsonarista. Eu sou de centro-esquerda, então tem muita diferença de pensamento. Tem gente ali que mete o pau na escola, fala que é o mal da sociedade. Eu não acho isso. Só acho que a escola está muito adoecida e que precisava de efetivações para ser melhor. E eu não gostaria de expor a minha filha como experimento para melhorias.
Por que tem que regulamentar? Para garantir a segurança das crianças e evitar que sejam tiradas da escola por abuso ou trabalho escravo. A criança também precisa passar por testes para saber se está aprendendo ou não. Não podemos deixá-las ao léu.
Educar em casa foi uma opção minha. Ninguém quer obrigar nenhuma mãe a ser educadora, só dar opção para aquelas que querem fazer isso, e eu tenho visto isso como um privilégio. Para mim, é uma alegria estar com a minha filha.
Me dá muito trabalho buscar, estudar, mas me dá muita satisfação também. Eu fico cansada, mas que dona de casa não fica?"
* A mestre em saúde pública Cláudia Maia, 39, mora em Belo Horizonte (MG), e tem dois filhos de 2 e 4 anos; ela, que também é estudante de pedagogia, adotou a educação domiciliar na pandemia
"Vi que meus filhos tinham saberes que eu não dava valor"
"Há seis anos tirei meus dois filhos da escola. Sou psicopedagoga, trabalhei na educação básica por dez anos como professora e diretora de escola pública. Com o passar do tempo, eu fui percebendo que existe uma cultura do ensino que é voltada para atender o sistema, para preservar o capitalismo e as desigualdades econômicas e sociais.
Eu moro em uma comunidade no meio do mato, a gente tinha muitas experiências colaborativas que meus filhos já viviam quando não estavam na escola. E a experiência na escola ficou incompatível com nossos valores.
No começo a gente tinha horário, matéria. Para mim foi muito fácil montar esse currículo dentro das normas. Mas o que falta é ouvir mais as crianças, e meus filhos começaram a trazer que não era isso que queriam. Aí eu comecei a incluir música de um jeito mais aprofundado, a relação com a terra, com o plantio.
Na prática a gente foi se desprendendo do currículo e fomos construindo outro, aberto a todas as maravilhas do mundo, da sociedade e de nós mesmos.
Com meus filhos em casa, eu descobri que não sabia quase nada sobre eles. Percebi o jeito que eles aprendem e que eles tinham muitos saberes que eu não dava valor. Me tornei mais próxima deles.
O que me afastou do modelo de homeschooling foi que comecei a me ver em uma comunidade que não me representava. Essa questão de valores e da forma como eles estão entendendo isso. Eu até tentei trazer minhas ideias, mas sentia resistência de diálogo.
Por que essas famílias querem tirar os filhos da escola? São pessoas que têm um interesse muito elitizado. E o meu objetivo como professora, educadora e mãe desescolarizada é para a libertação das pessoas. É para ter uma aprendizagem mais abrangente, que contemple o relacionar e a comunicação.
Esse grupo que está se organizando para aprovar essa lei é extremamente conservador, tem uma visão de bolha, que quer mostrar que são melhores porque vão dar uma educação 'high tech'. Eles não têm uma visão transformadora. É muito delicado esse terreno que a gente está entrando com a legalização. Existe um interesse político e econômico de ter uma representatividade e implementar uma visão conservadora no país.
Isso não me atende. Vocês podem fazer a lei que for, mas eu vou continuar numa certa ilegalidade porque não é assim que quero fazer a aprendizagem. Sou pesquisadora de aprendizagem e desenvolvimento humano. Para a gente criar uma lei, a gente tem que trabalhar muito no terreno da prática, da conscientização da sociedade, de uma mudança real."
*A psicopedagoga Su Verri, 37, tem um filho de 15 e outro de 17 anos e vive em Baependi (MG); ela trabalha com aprendizagem autodirigida e é fundadora do centro de aprendizagem ágil ALC Nature
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