Ela fez aborto legal na Argentina: "Libertador saber que não cometi crime"
Na madrugada do dia 30 de dezembro de 2020, o Senado argentino aprovava a lei de descriminalização do aborto. O projeto, de autoria do governo do presidente Alberto Fernandez, foi sancionado pelo Executivo em janeiro de 2021, garantindo a todas as mulheres em solo argentino o direito de interromperem a gravidez até a 14ª semana de gestação.
Com a decisão, a Argentina tornou-se o 6º país latino-americano a legalizar o aborto — e o 67º no mundo. A interrupção, até então, era permitida apenas em caso de estupro ou quando a gravidez trazia risco à vida da mulher.
Com a lei, qualquer instituição do sistema de saúde da Argentina pode ser procurada por gestantes com até três meses e meio de gravidez para a interrupção da gravidez. O atendimento pode ser feito na emergência de algum hospital ou com uma consulta marcada em um dos centros de saúde indicados pelo Ministério da Saúde. Após essa consulta, a lei exige que o aborto legal seja realizado em até dez dias.
Seis meses após a legalização do aborto no país, Universa conversou com estudante Analia*, 25, de Buenos Aires, que realizou o aborto legal em abril. "Sempre usei método contraceptivo, até que ele falhou. Percebi que minha menstruação estava atrasada e fiz um teste de farmácia. Deu positivo e naquele momento eu já sabia que não seguiria com a gestação", lembra.
Ao buscar informações sobre como realizar o procedimento que está em seus primeiros meses de implementação no país, encontrou o grupo de ativistas feministas Socorristas, que auxilia mulheres que decidem interromper a gravidez. Foi orientada então a ligar para um serviço de informações 0800 do Ministério da Saúde argentino e, no dia seguinte, já conseguiu marcar uma consulta em um hospital público de Buenos Aires.
A estudante foi ao hospital com o namorado, mas, por causa dos protocolos de saúde na pandemia de covid-19, precisou passar pela consulta sozinha. Após realizar uma ecografia e confirmar que sua gestação era de cinco semanas, o médico que lhe atendeu explicou o que poderia ser feito para interromper a gravidez. Em seu caso, a recomendação foi a de usar um medicamento que induz ao aborto, para ser administrado em casa.
"Tive medo, mas fui acolhida e não me senti sozinha"
O médico então explicou a Analia como tomar a medicação, quais eram os efeitos colaterais e o que iria acontecer nos próximos dias com o corpo dela. Ela conta que também foi informada que teria acompanhamento médico por telefone e orientada a voltar ao hospital caso sentisse qualquer sintoma fora do previsto.
"Fui extremamente acolhida pelo médico, pelas enfermeiras, por todos. Tive muito medo porque, além de ser a primeira vez que aborto, estamos estava fazendo um aborto, estamos em uma pandemia. Mas senti que não estava sozinha", conta. "Ele me perguntou se eu tinha certeza de que queria fazer, e eu disse que sim. Então assinei o documento no qual eu consentia a realização do procedimento. Ele foi extremamente amável e deixou seu telefone para que eu pudesse chamá-lo a qualquer hora, se fosse preciso".
Se um médico não quiser realizar o procedimento, a nova lei permite que isso aconteça. No entanto, ele deve conseguir outro profissional para realizá-lo. A médica Estefania Cioff, que atua na Rede de Profissionais de Saúde pelo Direito de Decidir, ressalta que o profissional de saúde deve explicitamente explicar e encaminhar a mulher a outro profissional, garantido que a prática seja realizada em no máximo dez dias.
"Ninguém tentou me fazer mudar de ideia"
Antes da realização do aborto, Analia diz que não houve nenhuma tentativa de fazê-la mudar de ideia. E que o atendimento com psicólogos acontece dez dias após o procedimento. "Simplesmente respeitaram minha decisão, como deve ser."
Quando perguntada se chegou a repensar a decisão, a jovem silencia. Depois, com a voz embargada, diz que sim.
Como eu já tenho um filho pequeno, é um pouco forte. Mas eu moro com a minha mãe e não tenho a menor condição ter mais um filho. Sem trabalho, como vou colocar mais uma criança no mundo? Me custou muito chegar a essa decisão. Socialmente, nós mulheres somos sempre julgadas, mas devemos ter o direito de poder decidir.
Ela conta que teve todos os efeitos colaterais que o médico havia lhe informado: sangramento, febre, dores de cabeça e no corpo. "Fiquei muito mal. O medo e as dores tomaram conta da minha mente. Por sorte, eu estava com a minha mãe em casa. Ela me apoiou e me ajudou a passar por esses momentos de muita angústia. Além do médico, também tive todo o apoio das Socorristas, que por telefone me ajudaram muito emocionalmente."
Como as dores não cessavam, foi orientada a retornar ao hospital. Realizou exames e os médicos viram que ela precisaria ser submetida a uma aspiração, com anestesia geral. "Até hoje lembrar do procedimento ainda me choca um pouco. Mas, ao mesmo tempo, eu estava tão amparada, por minha família, meu namorado, as socorristas e a equipe médica, que isso foi um grande alívio."
"Não me senti julgada em nenhum momento"
Antes de deixar o hospital, os médicos lhe orientaram sobre como ela poderia evitar outra gravidez indesejada e forneceram anticoncepcionais. "Saí de lá com a decisão de fazer uma laqueadura, porque a verdade é que eu não quero ter mais filhos. Agora vou esperar para poder fazer essa nova cirurgia. Apesar de ter ficado grávida usando um contraceptivo, é muito importante esse tipo de orientação que eles oferecem após o procedimento", fala.
Não me senti julgada em nenhum momento e isso foi fundamental para mim. Precisei lidar com o julgamento interno, porque eu cresci ouvindo que fazer um aborto era ilegal. Se o aborto deixa de ser um crime e se torna um direito, isso interfere no modo como a gente sente. E saber que o que eu fiz não é crime e sim um direito, é extremamente libertador.
Analia diz que tem certeza de que interromper a gestação não desejada foi o melhor a ser feito para ela. "Imagino como deve ser abortar em países em que é ilegal. Deve ser horrível, porque se acontece alguma coisa com essa mulher, ela morre, é isso que acontece. Mas com a lei, isso muda. Por isso o aborto deve ser legalizado no mundo inteiro", afirma.
Agora, ela diz que sua missão é ajudar outras mulheres que estejam passando pela mesma situação, porque ainda falta informação sobre o aborto legal no país desde a entrada em vigor da nova lei.
Eu sabia que a lei tinha sido aprovada, mas não sabia mais nada. Se eu não fosse buscar informação, não saberia quais eram os meus direitos, como muitas mulheres ainda não sabem.
"Não estou mais pensado no que passou, porque a verdade é que foi uma experiência muito delicada. Agora, o eu que mais quero é ajudar com informações as mulheres que estão passando pelo que eu passei. Estou pensando no futuro e que isso não volte a acontecer."
* A entrevistada pediu para não ter seu nome nem ocupação revelados
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