Como Ana Paula Valadão: religiosas têm fé questionada por fazerem terapia
"Desculpa por ser leigo, mas eu pensava que o cristão não precisava de terapia, pois Jesus supre todas as necessidades", escreveu um seguidor à cantora gospel Ana Paula Valadão após a artista compartilhar sua experiência com acompanhamento psicológico no Instagram.
A pastora da Igreja Batista da Lagoinha, unidade Miami (EUA), vem promovendo lives e debates sobre o tema com sua psicóloga. Em um dos vídeos em que postou, ela diz que é constantemente perguntada por evangélicos se fazer terapia não seria falta de fé.
"Deus deu sabedoria aos homens para desenvolver remédios e tratamentos para todo o nosso organismo e desfrutar de profissionais e medicamentos como psiquiatras é uma bênção que vem de Deus e não exclui a fé", ela explicou num dos seus posts.
Em conversa com Universa, mulheres evangélicas relataram ter também a sua fé questionada por procurarem ajuda psicológica para tratar depressão, tristeza, dores. Mas elas não se abalaram, e aqui ensinam que religião e ciência podem caminhar juntas.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a depressão afeta 322 milhões de pessoas no mundo. E uma pesquisa conduzida pelo neuropsicólogo Antônio de Pádua Serafim, do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP), entre maio e junho do ano passado, mostrou que a porcentagem de pessoas afetadas pela pandemia é maior entre a população feminina, com 40,5% apresentando sintomas de depressão, 34,9%, de ansiedade e 37,3%, de estresse, entre os três mil voluntários ouvidos.
"Pessoas entram na sua mente e dizem que Deus é que vai curar"
"Quando criança, sofri abusos sexuais de parentes. Além disso, minha mãe e meu padrasto eram alcoólatras. Meu pai biológico tentou matar nós duas, e ela fugiu dele.
Nunca contei para ninguém e me calar mexeu com meu emocional. Sofri muito mesmo, e chega uma hora que seu corpo não aguenta: meus cabelos e unhas caíram, surgiram feridas pelo corpo.
Frequento a igreja evangélica desde os dez anos, mas saí aos 13 porque queria conhecer as coisas do mundo. Aos 14, conheci meu marido e fui morar com ele.
A gente tinha muita dificuldade na relação sexual por causa dos meus traumas, mas só consegui falar para ele tudo que passei depois de 15 anos de casada.
Há dois anos tive problemas hormonais e tomei remédios que me levaram à depressão. Também descobri um câncer na tireoide e naquele momento já não dormia mais direito, tive crise de ansiedade e parei no hospital. Foi quando me indicaram uma psiquiatra.
Ela me indicou remédios para ansiedade, mas resisti no início: as pessoas entram na sua mente e ficam falando que você não precisa de remédio, porque Deus vai curar. Isso não é crer em Jesus, mas seguir uma religiosidade. Eu escolhi seguir Jesus. E fiz o tratamento.
Contei o que estava passando para algumas pessoas na igreja, mas além delas espalharem os meus problemas, falaram que minhas angústias eram fruto de pecados do passado, e que eu estava pagando por eles.
Muitas vezes, na igreja, você pede ajuda e é julgada. Isso frustra muitas pessoas. Já me perguntaram: 'Onde está o Deus que você serve? Você não é uma mulher de fé?'. A gente tem Deus, mas precisamos das pessoas. Ele cura, mas deixou homens na terra para nos orientar.
Tive um sobrinho com depressão, que frequentava a igreja, mas não teve apoio para enfrentar a doença e se matou. E as pessoas ainda falaram que estava possuído. Amigos pastores também se suicidaram por não pedirem ajuda.
Hoje, minha mente está melhor, mais tranquila. Conversar é muito bom, e sempre quando alguém vem me pedir ajuda, um conselho, eu indico terapia. E se for mulher, ainda oriento a fazer exames, incluindo hormonais."
Maricelia Barbosa dos Santos, 38 anos, cuidadora e missionária, de São Paulo (SP)
"Eu não via a depressão como demônio"
"Tive um tumor chamado meningioma após o nascimento da minha filha mais nova, hoje com quatro anos, e precisei fazer uma cirurgia na cabeça. Tomei muitos remédios fortes, com tarja preta, e desenvolvi síndrome do pânico, além de ter passado por uma depressão pós-parto.
As pessoas acham que não podemos ter depressão, mas estamos na terra, portanto sujeitos a passar por essas coisas. Eu não via a depressão como demônio como dizem na igreja. Respeito todas as religiões, mas determinadas ações feitas por homens oprimem a mente. E Jesus não é religião, mas essência do Pai dentro de nós. Eu vivo essa essência.
Ansiedade, depressão e síndrome do pânico são sinais de sobrecarga, não declínio da fé
Ter depressão não quer dizer que estou longe da graça. Por isso fui fazer terapia. Não descarto em nenhum momento a possibilidade da fé curar, porque é ela que me sustenta diante de tanta sobrecarga, mas o senhor não anulou a ciência da psicologia. Sou ser humano, não Deus.
Também decidi estudar psicologia, mas ainda não concluí a faculdade.
Muitos pastores estão fazendo isso: não só buscando terapia para ter qualidade de vida como estudando. O maior princípio do messias é ter qualidade de vida, e estar em terapia não precisa ter diagnóstico de depressão.
Minha filha mais velha, de 19 anos, também teve depressão e síndrome do pânico e tentou o suicídio. Ela se curou com terapia. A fé ajudou, claro, mas a terapia colaborou.
Eu não posso clinicar dentro da igreja, pelo vínculo que tenho com as pessoas, mas indico a terapia àqueles que me procuram, incluindo mulheres. Já me deparei com algumas dentro de igreja passando por abuso e conseguiu ajudar no lado espiritual e psicológico também. A gente precisa nortear o caminho através de Deus e também de pessoas preparadas."
Apóstola Maria Costa, 42 anos, de Olinda (PE)
"Igreja sabia do meu sofrimento e mandou suportá-lo só com oração"
"Passei por uma infância muito rígida, com pai militar, que me comparava a uma irmã mais nova, falava que ela era a mais inteligente. E minha mãe me fazia tomar conta dos meus sete irmãos, fazer os serviços domésticos quando eu tinha apenas dez anos, então sempre desejei fazer terapia para resolver minhas tristezas.
Fui parar na igreja evangélica aos 18 anos e me casei com 24, seguindo todo protocolo bíblico. Meu então marido também frequentava a igreja, mas vivi 25 anos um casamento muito tóxico. Ele não me respeitava como mulher, como mãe. Nós tivemos dois filhos: um com Síndrome de Down, de 34 anos, e o caçula, de 28.
Sofri violência física e psicológica. Uma vez, estava me arrumando para sair e, ao me ver passando batom, ele o pegou e borrou todo o meu rosto. Não gostava que eu usasse maquiagem. Perguntei o que eu poderia fazer para resgatar meu casamento, e ele falou para eu arrumar um namorado.
A igreja sabia de tudo e me mandava suportar com oração. Aprendi na igreja que tinha que ser submissa e orar para que Deus pudesse transformar a vida dele. Isso é balela. A pessoa é o que é.
Decidi procurar um tratamento psicológico, mas porque achava que o problema estava em mim. Só que achei um terapeuta que era também pastor, e saía da consulta pior do que entrava. Tudo ele achava que era espiritual, até que um dia falou que ia fazer uma oração por mim porque, na minha vida, só tinha derrota.
O que mais existe hoje são pessoas que desconhecem o evangelho.
Achei outra profissional e descobri que a depressão estava acabando comigo e eu não tinha consciência. Precisei tomar remédio, e ouvi do meu ex: 'Como assim crente tomando medicação?'. E ele falava para todo mundo --na igreja e na família-- que o problema estava em mim, que eu estava ficando louca. Ninguém ficou ao meu lado.
Ele acabou saindo de casa e me envolvi com uma pessoa com quem fiquei por 7 anos. Ele não era crente, mas conhecia o amor de Jesus. Tinha uma verdadeira paixão por mim e amava meus filhos. Mas em 2018 ele teve um infarto e morreu, aos 50 anos.
Tem 15 anos que não ponho os pés na igreja. Sofri muito assédio, inclusive de pastores casados. Mas saí mesmo quando agrediram meu filho especial. Ele foi num evento comigo usando uma camisa com a foto de uma banda de rock. Um dos pastores colocou as mãos sobre a cabeça dele para orar, e meu filho não gostou, lhe dando um tapa na mão. Quando vi, tinha umas nove pessoas segurando meu filho falando que ele estava possuído e arrancaram à força sua camisa.
Parei a terapia antes da pandemia, mas quando me despedi da terapeuta senti uma paz tão grande e a agradeci por ter me ajudado. Hoje sei quem sou, da minha capacidade, o quão sou forte e capaz e o quanto posso ser feliz diante de todas essas situações. Todo mundo deveria fazer terapia."
*Claudia Ferreira, 59, de Belo Horizonte (MG)
"Negacionismo científico também está dentro das igrejas"
Nancy Cardoso Pereira, doutora em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e pós-doutora em história antiga na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), recorre aos livros do Novo Testamento, dos apóstolos Marcos e João, ao explicar que embora escrita sob outro contexto, a Bíblia ensina os fiéis a buscar uma cura, entre elas a escuta, para uma vida saudável:
Jesus fala: 'Eu vim para que todas tenham vida, e vida em abundância'. E quando Jesus foi questionado por andar com doentes, ele respondeu: 'Os doentes precisam dos médicos'. Então diria que a Bíblia não tem nenhuma receita para a questão da depressão, mas aponta para processos de cura.
Pastora metodista, Nancy diz que tem observado um cuidado maior das igrejas com a saúde dos fiéis, principalmente em tempo de pandemia.
"O negaconismo científico cobre o aspecto do psicológico e dos afetos e isso está dentro das igrejas também. Elas podem adoecer as pessoas, mas as igrejas também podem ser espaços comunitários de saúde, escuta de aceitação", aponta.
Como pedir ajuda em caso de depressão
Quem tem pensamentos suicidas ou está com depressão, entre outras dificuldades relacionadas à saúde mental, e precisa de apoio emocional, pode ligar para o CVV (Centro de Valorização da Vida) no número 188, 24 horas por dia. O atendimento também pode ser feito por chat no site da entidade e por e-mail. Existem ainda os prontos-socorros psiquiátricos, que podem ser especializados ou funcionar em hospitais gerais. São eles que devemos procurar em casos de urgência e emergência emocional. Os prontos-socorros psiquiátricos especializados costumam ficar próximos de hospitais gerais, uma vez que o paciente pode precisar da avaliação de outros especialistas como um neurologista ou um cardiologista, por exemplo.
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