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"Mulher pode amar filho e se arrepender de ser mãe", diz autora israelense

A socióloga israelense Orna Donath, autora do livro "Mães Arrependidas" (ed. Civilização Brasileira) - Reprodução Instagram/Daniel Tchetchik
A socióloga israelense Orna Donath, autora do livro "Mães Arrependidas" (ed. Civilização Brasileira) Imagem: Reprodução Instagram/Daniel Tchetchik

Marcelle Souza

Colaboração para Universa

04/07/2021 04h00

A antropóloga israelense Orna Donath, 44, já tinha entrevistado pessoas decididas a não ter filhos, quando começou a se fazer uma pergunta: será que existem mulheres que se arrependem de ser mães?

Não encontrou estudos sobre o assunto e decidiu fazer a pergunta também em fóruns virtuais, em artigos publicados na imprensa e em conferências acadêmicas. Pouco a pouco, essas mulheres começaram a fazer contato. "Eu queria entender melhor esse triângulo entre arrependimento, maternidade/não-maternidade e a sociedade. Eu queria saber por que não havia nada escrito sobre a possibilidade de as mulheres se arrependerem de ser mães", diz.

Durante a pesquisa, realizada entre 2008 e 2013, ela ouviu 23 mulheres entre 26 e 73 anos que tinham algo em comum: amavam seus filhos, mas odiavam a experiência e as obrigações da maternidade. E, para muitas, isso causava bastante sofrimento.

Donath explica que esse não é um paradoxo, já que essas mães amam seus filhos como seres humanos e querem que eles cresçam felizes e saudáveis. Por outro lado, essas mulheres se arrependem de gestar e maternar, odeiam ser as responsáveis pelo cuidado das crianças e lamentam perder a vida que tinham antes. É o chamado arrependimento materno, segundo ela:

Arrependimento materno é o descobrir e o sentir que você cometeu um erro ao decidir gestar ou adotar uma criança; é se dar conta de que, para você, todas as dificuldades que acompanham a maternidade não valem a pena.

A pesquisa da israelense virou o livro "Mães Arrependidas" (ed. Civilização Brasileira), traduzido em diversos idiomas e que gerou debate em muitos países. Nesta entrevista a Universa, Donath busca desconstruir o tabu associado ao arrependimento materno, mostrando que não se trata de "mulheres egoístas" ou "más", mas de pessoas comuns, que possuem diferentes experiências de maternidade. Fala ainda da sua própria decisão de não ser mãe e da pressão social da maternidade compulsória.

UNIVERSA: Na sua pesquisa, você ouviu mulheres de diferentes grupos e idades, incluindo avós, que se arrependeram de terem se tornado mães. Como as mulheres percebem e sentem esse sentimento? O que é o arrependimento materno?
ORNA DONATH: Arrependimento materno é o descobrir e o sentir que você cometeu um erro ao decidir gestar ou adotar uma criança; é se dar conta de que, para você, todas as dificuldades que acompanham a maternidade não valem a pena.

Muitas das mulheres que eu entrevistei enfatizaram a diferença entre os seus sentimentos sobre a maternidade e sobre os seus filhos: elas se arrependem de ser mães, mas amam seus filhos.

Essa distinção sugere que que elas se relacionam com seus filhos de forma separada e independente, como seres humanos que têm o direito de viver. Ao mesmo tempo, elas se arrependem de terem se tornado mães e de serem responsáveis pela vida de outra pessoa.

Como o arrependimento materno afeta a vida dessas mulheres?
Mães que não desejam ser mães parecem ter uma dupla responsabilidade: pelo bem-estar dos seus filhos, por conta da expectativa pessoal e social de que cuidem deles atentamente, mas também pelo senso de responsabilidade de terem tido uma criança.

Assim, embora muitas mães se sintam obrigadas a cuidar dos outros, a ponto de apagar as suas próprias necessidades e sentimentos, isso é intensificado, entre outros motivos, porque se arrependem de terem se tornado mães.

No meu estudo, a discrepância entre o desejo de não ser mães de ninguém e a sua realidade cria uma disputa entre identidades, enquanto tentam fazer o melhor que elas podem para cuidar dos seus filhos.

Algumas mulheres levam anos vivendo esse conflito até falar abertamente sobre não gostarem da maternidade. Outras nunca vão conseguir falar. Por que isso ainda é um tabu?

maes arrependidas - Divulgação - Divulgação
A pesquisa de Orna Donath virou o livro "Mães Arrependidas", traduzido em diversas línguas
Imagem: Divulgação

Ainda é um tabu porque não querer ser mãe e se arrepender da maternidade quebram algumas das noções centrais da nossa sociedade contemporânea. Primeiro, é uma evidência de que a maternidade tem diversos sentidos para diferentes mulheres e que, ao contrário do que nos dizem, não se trata de uma única experiência para todas.

Segundo, porque faz com que a gente trate a maternidade como um relacionamento, não como um reino mítico. E como qualquer relacionamento humano, contém todos os tipos de emoções, como alegria, tédio, ódio, ciúme, amor, raiva e, sim, também arrependimento.

Terceiro, lembra a sociedade que mulheres são sujeitas que têm a capacidade de avaliar, imaginar, pensar, sentir e se autodeterminar. A sociedade patriarcal preferia ser a dona de todas essas habilidades.

Quarto, o arrependimento materno interrompe uma história linear, segundo a qual é apenas uma questão de tempo até que as mulheres queiram ser mães e/ou valorizem a maternidade e a reconheçam como sua única essência de vida. As mães que se arrependem — algumas quando já são avós — não correspondem à catarse do 'final feliz' quando dizem: 'ainda sentimos a mesma coisa sobre a maternidade, que foi um erro'.

Muitas das suas entrevistadas disseram que amam seus filhos e netos, mas odeiam a maternidade. Como isso é possível?
De fato, quase todas as mulheres que participaram no estudo disseram repetidamente que amam seus filhos como seres humanos, amam quem são seus filhos, mas odeiam estar nesse relacionamento como mães.

Uma vez que muitas delas sentiram arrependimento desde o momento que ficaram grávidas, podemos entender que isso não tem a ver com a personalidade da criança, mas com a percepção de que a maternidade pode não ser adequada para elas.

Perceber a maternidade como uma relação dinâmica e em constante mudança, entre dois sujeitos específicos, nos permite a descartar a expectativa de que todas as mães têm os mesmos sentimentos pelos seus filhos e sobre elas mesmas como mães. Assim conseguimos entender melhor a maternidade como parte de um espectro humano de experiências e relações, no lugar de pensar um vínculo unilateral no qual as mães influenciam a vida de seus filhos sem serem afetadas pela maternidade.

Você acha que é possível evitar o arrependimento materno?
Eu não acho que exista uma forma de eliminar o arrependimento materno, porque se arrepender é humano, e mães são sujeitos com as suas próprias necessidades, sonhos, habilidades e deficiências. Mas acho que muitas mudanças são necessárias para reduzir o sofrimento na vida de tantas mulheres e mães.

O primeiro passo é reduzir a pressão para que as mulheres se tornem mães. Para eliminar esse imperativo agressivo, que leva um número desconhecido de mulheres a serem mães com consentimento, mas contra a sua vontade, deixemos elas serem as donas dessa decisão.

Temos que continuar exigindo mudanças urgentes e necessárias para aliviar algumas dificuldades, como outra divisão do trabalho de cuidado, a mudança na forma como homens são socializados para a paternidade e a importância do apoio institucional, por meio de benefícios fiscais, moradia acessível e creches. Em outras palavras, devemos continuar compreendendo as dificuldades específicas enfrentadas por mães de baixa renda, solteiras, mulheres negras, lésbicas ou imigrantes, bem como as mães que lidam com deficiências físicas ou mentais.

O arrependimento é um problema pessoal ou coletivo? Como a sociedade pode apoiar as mães arrependidas?
Esse é um problema pessoal e coletivo ao mesmo tempo.

Se personalizarmos o arrependimento, como se fosse uma falha de algumas mulheres em se adaptar à maternidade (sugerindo, portanto, que essas mães deveriam se esforçar mais), ficaremos alheios à forma com que inúmeras sociedades ocidentais empurram as mulheres não só para a maternidade, mas também para a solidão com que têm que lidar com as consequências dela.

Eu acho que o primeiro passo para dar apoio é reconhecer mulheres como sujeitos, não como objetos. Eu estou aqui afirmando o óbvio em um estado patriarcal — que somos seres humanos, de carne e osso. Isso significa também que podemos cometer erros.

Karla tenório - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
A atriz e escritora Karla Tenório, 38, de SP, criou o movimento Mãe Arrependida
Imagem: Reprodução/Instagram

O segundo passo é reconhecer que a maternidade é um relacionamento, não um reino mítico. Um dos relacionamentos em que muitos nós estamos envolvidos e, como qualquer outro, pode contar com todos os tipos de emoções. E se nesse relacionamento as pessoas estão dispostas a ouvir atentamente e, às vezes, a pedir desculpas, provavelmente não será uma experiência traumática. Portanto, uma percepção mais 'concreta' das mães e da maternidade pode dar às mulheres a capacidade de respirar melhor física e simbolicamente, e isso vai reduzir o sofrimento na vida delas e das crianças.

Pessoalmente, como a pesquisa se relaciona com a sua decisão sobre a maternidade?
Aos 16 anos, eu entendi que não seria mãe. Eu nunca considerei isso como algo que deveria ser resolvido. Para mim, parecia lógico que algumas mulheres quisessem ser mães, e outras não.

No entanto, não demorou muito para eu entender que a sociedade se relaciona comigo como se eu tivesse um problema. Do meu ponto de vista, a sociedade é o problema, não a minha falta de vontade de ter filhos.

Aqui em Israel, mulheres que não querem ser mães ainda são condenadas e vistas como se não fossem 'mulheres de verdade', 'pouco femininas', 'infantis' e 'egocêntricas'. Em muitas publicações sobre mim, disseram que eu decidi fazer a pesquisa sobre porque estava cansada de ouvir uma ameaça comum às mulheres que não querem ser mães. Eu nunca disse e nunca senti isso.

O que aconteceu é que eu fiquei intrigada com a ameaça comum e o uso político das emoções para nos alinhar, enquanto mulheres, à maternidade. Eu queria entender melhor esse triângulo entre arrependimento, maternidade/não-maternidade e a sociedade.

Eu queria saber por que não havia nada escrito sobre a possibilidade de as mulheres se arrependerem de ser mães.

Seu livro "Mães Arrependidas" foi traduzido até para o japonês. Como foi a recepção do texto nesses países?
Desde 2015, quando eu dei a primeira entrevista sobre o meu estudo, surgiram muitas discussões em diferentes lugares, mas elas foram praticamente as mesmas, pois incluíram debates acalorados, desde a condenação dessas mães até uma grande quantidade de testemunhos aliviados de mulheres que se arrependiam da maternidade. Além disso, um número desconhecido de mulheres e mães reforçou a importância de expor, por meio do arrependimento, suas angústias sobre a obrigação de se tornarem mães ou de ocuparem a posição de principais cuidadoras dos seus filhos.

Você foi atacada ou recebeu alguém tipo de ameaça por causa do seu livro? Por que as reações podem ser agressivas quando as mulheres falam sobre arrependimento materno?
Eu não recebi ameaças após a publicação do livro, mas alguns comentários foram, de fato, bastante agressivos. As respostas agressivas estão relacionadas ao fato de que o arrependimento materno é considerado um tabu.

Qual é a sua pesquisa atual?
Eu estou dando alguns cursos sobre a perspectiva social da não-maternidade e da maternidade em algumas faculdades em Israel. Nos últimos quatro anos, tenho moderado grupos de mulheres que não têm certeza se querem ser mães ou não. A gente se encontra durante dez semanas e discutimos juntas seus sentimentos e reflexões sobre o tema. Além disso, comecei um novo estudo sobre a vida de mulheres idosas (entre 70 e 86 anos) que não são mães.