Juliana Alves: "Quando tem que gritar 'fora, Bolsonaro', eu grito"
Enquanto personalidades da TV, da música e da internet são criticadas por não se posicionar politicamente, a atriz Juliana Alves, no ar em "Salve-se Quem Puder", não deixa dúvidas: "Quando tem que gritar 'fora, Bolsonaro', eu grito. Quando tem que bater panela, eu bato". Por conta disso, já perdeu papéis, conta, em entrevista a Universa. Mesmo assim, não se arrepende, "se não gostar, sinto muito", diz.
Filha de um sociólogo sindicalista e ligado ao Movimento Negro Unificado, Juliana, hoje com 39 anos, discute pautas como machismo, racismo e desigualdade há décadas. Na adolescência, fez parte da ONG Criola, que na época tinha como uma de suas principais lideranças a médica Jurema Werneck, hoje diretora da Anistia Internacional. No começo da vida adulta, quando entrou no Big Brother Brasil, aos 21 anos, recebeu o rótulo de "a estudante engajada" da edição. Alguns veículos, lembra, se referiram a ela como "chata", justamente por trazer à tona o lado ativista.
Hoje, depois de 18 anos de carreira e pelo menos 30 papéis, entre novelas, filmes, séries e peças de teatro, diz que realiza um sonho ao estrear como protagonista na comédia nacional "Correndo Atrás" — não por ter uma personagem de destaque, mas porque todo o elenco principal é composto por atores negros, entre eles Ailton Graça e Lázaro Ramos. "Eu nunca vou me sentir plenamente feliz com um trabalho enquanto for a única pessoa negra na equipe", afirma.
Nesta entrevista, Juliana Alves não economiza nas críticas ao governo Jair Bolsonaro (sem partido) e questiona colegas que silenciam diante do atual cenário político. Ela fala, também, sobre a ainda rasa representação negra na TV brasileira e sobre como aborda racismo e machismo em casa, com a filha Yolanda, de 3 anos. E ainda comenta um fato marcante que deve protagonizar nas próximas semanas: o primeiro beijo entre uma mulher cis e um homem trans na TV aberta brasileira — a cena vai ao ar na novela "Salve-se Quem Puder". Leia os melhores trechos:
Universa: Você se posiciona abertamente contra o governo Bolsonaro. Já teve medo que esse posicionamento político de alguma forma prejudique sua carreira?
Juliana Alves: No início, até meados 2010, 2011, eu ouvia muito isso, mas nunca me intimidei. Por mais que eu não poste sobre política o tempo todo, se uma pessoa que está me sondando para um trabalho observar bem, não vai ser difícil saber o que eu penso. E se não gostar, sinto muito. Quando tem que gritar "fora, Bolsonaro", eu grito. Quando tem que bater panela eu bato.
Já vivi situações em que o fato de eu ser uma pessoa que não posta só selfies e fotos bonitas pesou contra mim numa decisão profissional. Mas isso não vai mudar minha conduta.
Às vezes rolam algumas confusões, do tipo "ah, mas você é do samba" [Juliana é rainha de bateria da Unidos da Tijuca], ou "ah, mas você é mãe", como se por isso eu não pudesse falar de política. É justamente porque eu respeito a minha cultura e tenho um governo que não gosta de cultura popular brasileira, justamente porque eu sou mãe e quero um mundo melhor para a minha filha, que eu falo de política.
Algumas personalidades estão sendo pressionadas a se posicionar contra o governo e até a declarar em quem votaram em 2018. Como vê esse movimento? É papel do artista se manifestar politicamente?
Eu não posso ser autorreferência e dizer "eu sou assim, todo mundo tem que fazer igual", porque eu tenho uma história de vida que tornou isso muito natural.
Cada um tem sua razão para não se manifestar — tem pessoas que têm medo, se sentem ameaçadas, outras se calam porque compactuam com o governo mesmo. Eu não tenho uma crítica direta e pessoal a nenhum colega, mas acho que as pessoas se mostram muito no silêncio.
Como artistas, podemos nos manifestar de diversas formas: nas redes sociais, em um vídeo de humor, em um espetáculo de teatro. Existem várias formas de não ser omisso. Então a gente reconhece aqueles que, no fundo, acham melhor manter o opressor e genocida [se referindo ao presidente Jair Bolsonaro] do que aquele que promoveu uma grande mudança na educação do país, mas foi acusado de corrupção por um juiz de intenções duvidosas [se referindo ao ex-presidente Lula]. São escolhas que não estão no mesmo patamar porque, no governo atual, não existe um lado para escolher; a democracia e os direitos conquistados estão em risco. São vidas que poderiam ter sido salvas e não foram.
Você vai protagonizar o primeiro beijo entre uma mulher cis e um homem trans na TV aberta -- a cena deve ir ao ar nas próximas semanas, na novela "Salve-se Quem Puder". O que esperar desta cena?
No momento em que gravamos não tínhamos esse dado de que era a primeira, mas imaginávamos. Tive várias conversas de bastidores com o Bernardo [de Assis, ator que interpreta Catatau] sobre a importância deste momento.
O público fica muito feliz quando se vê nas telas. Sei que muita gente na comunidade LGBTQIAP+ vai se identificar ao ver um personagem trans que está feliz, que constrói uma relação afetiva.
As cenas com o Bernardo trouxeram uma problemática da minha personagem, que é uma vilã e tinha comportamentos transfóbicos, como uma forma de denunciar o que acontece na vida real: preconceito no trabalho e falta de respeito com o nome social, por exemplo. Esse encontro partiu de uma situação engraçada, de um núcleo de comédia, e prova de que o entretenimento pode transpor barreiras e naturalizar relações de amor, de afeto.
Neste mês, você estreou no Telecine como protagonista de "Correndo Atrás", uma comédia nacional com todo o elenco principal formado por atores negros. O que este trabalho representa na sua carreira?
É um sonho realizado. Se você me perguntasse lá atrás qual era o meu sonho, eu diria que era fazer um filme como esse. É emocionante reconhecer na equipe -- desde o elenco até figurino, produção, direção -- pessoas que lutam uma luta parecida com a sua.
Fui criada com esse conceito de que a minha vitória não é só minha, é coletiva. Sempre quis olhar para o lado e ver mais pessoas negras trabalhando comigo. Realização para mim é isso. Eu nunca vou me sentir plenamente feliz com um trabalho enquanto for a única pessoa negra na equipe.
O audiovisual brasileiro ainda é muito racista?
Posso contar nos dedos de uma mão quantos personagens eu fiz que tinham família. Ter uma família em cena é a realização de um sonho como atriz. Tem um clipe nos bastidores do filme que dá para ver como eu fico emocionada conhecendo o cenário da minha personagem -- é uma coisa tão simples, as que eu sinto falta em muitos dos meus trabalhos, porque dão uma sensação de pertencimento, de lar, sabe?
Geralmente, a história de personagens negros fica só na superfície. Isso diz muito sobre a relação que a sociedade tem com as pessoas negras, como se a nossa história não importasse a ponto de merecer aprofundamento. As pessoas negras estão aí, mas sempre viveram à margem, sempre foram menos importantes. Falo sobre isso abertamente com autores e diretores.
Como essa conversa é recebida por eles?
Em "Sol Nascente" [novela da faixa das 18h, exibida em 2016], houve uma situação em que questionei uma cena do roteiro, o diretor me ouviu, conversamos e chegamos a um consenso. Mas anos antes, esse diálogo não aconteceria. Aliás, não aconteceu: em outra novela, mais antiga, questionei um detalhe no texto e ouvi que eu tinha um contrato para seguir. Falei: "Eu, com a minha história de vida, com as vivências que eu tenho, não gostaria de fazer essa cena como está escrita". E ouvi: "Você tem que fazer" e ponto final. Fiz a cena fazendo careta.
Tenho anos de carreira o suficiente para entender que, por mais que alguns não gostem de ouvir, falar sobre isso é um ganho. Tem gente que deixa de me chamar para trabalhar porque eu falo isso ou aquilo, mas de maneira geral vejo as pessoas mais interessadas, mais comprometidas. Esse espaço foi conquistado no grito, mas hoje a gente pode dialogar de igual para igual. Hoje, existe um entendimento de que o Brasil é um país racista e isso não é besteira. A gente precisa rever o que é escrito, gravado e transmitido.
Você é filha de uma professora e de um sociólogo sindicalista. Quais são suas memórias políticas da infância? E de que formas essa criação te impactou?
Meus pais estão separados desde que eu tenho 3 anos. Minha mãe me levava às passeatas, onde a gente sempre encontrava meu pai. Ele fez parte do movimento sindical -- foi presidente do sindicato dos funcionários da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] -- e do Movimento Negro Unificado. As amizades dele ainda estão nesses espaços. Desde pequena, via aquelas pessoas ali, entregues a uma causa, sem receber absolutamente nada, interessadas em transformar para melhor a vida das populações menos favorecidas. Na adolescência, continuei indo a manifestações e fui parte da ONG Criola [que atua pela promoção da igualdade racial]. E minha construção de carreira sempre teve esse olhar. Minha exposição pública não tem sentido se não estiver a serviço de uma transformação, se não ajudar a denunciar violências, abusos, injustiças.
Nos últimos anos, questões como racismo e desigualdade social chegaram ao BBB -- em 2021, pela primeira vez, o reality teve 50% do elenco negro. Como era o cenário quando você participou do programa, em 2003?
Vejo esse movimento com muita alegria e acho que a internet é a grande responsável por isso. Não tem como apagar um grupo que ganha visibilidade nas redes sociais.
Na época em que eu participei, eu até falava sobre questões sociais, mas não tinha ninguém disposto a ouvir. Tinha muita gente legal comigo na casa, mas mesmo pessoas legais são preconceituosas e não querem abrir mão de seus privilégios para debater raça e gênero, por exemplo. Nas últimas edições, isso mudou.
Lembro que tinha o rótulo das meninas bonitas e eu era "a estudante engajada" — algumas chamadas se referiam a mim desta forma. Teve até um VT que me colocou como chata porque mostrava cenas em que eu falava de questões sociais. Hoje a gente vive um momento de mais escuta, mas essa escuta foi conquistada lá atrás por pessoas tidas como chatas.
Você é mãe de uma menina de 3 anos. De que formas seu ativismo e seu pensamento político se relacionam com a maternidade?
Ser mãe era um dos meus grandes sonhos, agora estou realizando. É muito gratificante perceber na criança os resultados do que a gente transmite com a educação.
Me pergunto o tempo todo como eu posso educá-la para que ela seja uma mulher forte. Quero que ela seja forte não para aguentar as violências históricas que nós mulheres vivemos, mas para realizar todo o potencial dela, poder escolher, negociar, entender que ela tem possibilidades infinitas.
Além disso, me preocupo que ela seja uma pessoa legal. Para mim, é muito importante que a Iolanda seja uma criança legal com as pessoas — não agrida, não seja violenta. Quero que ela seja uma grande mulher, e isso dá trabalho.
Você já aborda com a Yolanda questões de racismo e machismo? De que forma essas discussões aparecem em casa?Essa pandemia deixou as crianças mais isoladas, mas agora que ela voltou para a escola, a gente percebe que surgem questões que ela provavelmente ouviu de um amiguinho ou até de um adulto. Outro dia, por exemplo, disse que eu não poderia consertar determinada coisa porque eu não sou menino. Falei: "Senta aqui, vamos conversar". E mostrei para ela outras coisas em casa que quem montou fui eu ou a babá, não o pai dela.
Sobre a questão racial é muito legal porque, como ela é criada muito próxima da minha família, que é uma família negra, ela tem uma visão do que é bonito que não está viciada pelos estereótipos. Não quero que ela perca nunca esse olhar. Ela tem cabelo liso e um dia disse que queria ter o cabelo igual ao meu, porque o meu vai para cima e o dela vai para baixo. Disse que ela não precisa se preocupar com isso, que não tem um tipo de cabelo mais legal que o outro.
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