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Impunidade une mulheres contra casos de abuso sexual em grupos de ayahuasca

Segundo o grupo de mulheres, apenas dois homens estão sob investigação: Diógenes Mira e Antônio Alves Marques Júnior, conhecido como Gê Marques, fundador da igreja Reino do Sol - Gê Marques
Segundo o grupo de mulheres, apenas dois homens estão sob investigação: Diógenes Mira e Antônio Alves Marques Júnior, conhecido como Gê Marques, fundador da igreja Reino do Sol Imagem: Gê Marques

Carlos Minuano

Colaboração para Universa

06/07/2021 04h00

Indignadas com a impunidade, a lentidão de processos e a desatenção com quem decide denunciar abusos sofridos em grupos religiosos de ayahuasca (também conhecida como chá do Santo Daime) grupos de mulheres de diferentes regiões do país, reunidas na internet, criaram um movimento com o propósito de prevenir contra agressores sexuais e de acolher vítimas.

Um dos casos debatidos pelo grupo é o do "guru de Piracicaba". Cinco mulheres que afirmam terem sido vítimas de Diógenes Cesar Gomes Mira — conhecido também como "Ananda Joy" — foram ouvidas no Ministério Público de São Paulo, em março de 2019, segundo a advogada criminalista, Renata Pallottini, que representa quatro denunciantes. No mesmo ano foi aberta uma investigação para apurar suposta violação sexual mediante fraude. O inquérito, ainda em fase pré-processual, tramita na Delegacia das Mulheres de Piracicaba.

Uma dessas mulheres é Cristina*, que pediu para não ser identificada na reportagem, que afirma que chegou ao grupo de Diógenes em Piracicaba, interior de São Paulo, "cheia de dúvidas e perdida após terminar um relacionamento difícil e abusivo". Mira, autointitulado "guru e mestre tântrico", dirige trabalhos com ayahuasca.

Cristina participou de uma sessão particular de cura com Mira, onde afirma ter sido orientada por ele a fazer uma "iniciação", que aconteceu durante rituais em que a relação sexual era parte do tratamento. Ela conta que a informação de que teriam relações sexuais só foi revelada pelo "guru" durante o ritual.

"Ananda [Diógenes] me disse que os bloqueios sexuais ficavam represados na parte intestinal e que para as energias voltarem a fluir eu precisaria fazer sexo anal com ele", conta Cristina. Segundo ela, o argumento do "guru" era que após a relação, Cristina teria um sonho revelador sobre bloqueios". Quando reclamei que nada tinha acontecido, Ananda disse que o meu problema era mais profundo e que seria necessário realizar a prática do fisting [introdução do punho na vagina ou ânus]".

Cristina diz que Mira sempre falava durante as sessões com ayahuasca sobre bloqueios e traumas sexuais e afirmava que o tantra (linha da ioga relacionada à energia sexual) "poderia ajudar no reequilíbrio". Cristina afirma ter sido violentada por quatros anos até que, em 2019, junto com outras vítimas, denunciou o "guru". Hoje ela vive fora do Brasil e a busca por equilíbrio continua — "mas com terapia e antidepressivos", diz ela.

"As vítimas foram coagidas a manter relação sexual com o acusado", conta a advogada Renata Pallottini. Mas, os encontros que prometiam cura e transformação resultaram em violências e traumas, ressalta. Diógenes continua realizando seu trabalho normalmente, atualmente como Ananda Ramana Das, e ainda não foi ouvido pela polícia.

"O sentimento é de impunidade. Esperamos que a delegada do caso conclua a investigação convencida dos pressupostos de materialidade e autoria para que o Ministério Público possa oferecer a denúncia contra o acusado", lamenta a advogada.

A reportagem de Universa procurou a Delegacia das Mulheres de Piracicaba, além de Diógenes Mira e um de seus advogados, Alexandre Longato. Mas até o fechamento desta matéria não obteve retorno.

Mulheres ayahuasqueiras unidas

Durante três dias, o seminário online "Mulheres Ayahuasqueiras", realizado em abril apresentou publicamente o MovAya, (Movimento Nacional de Combate ao Abuso no Meio Ayahuasqueiro). O evento reuniu lideranças femininas de grupos religiosos que utilizam a bebida ayahuasca, como o santo daime, além de advogadas, pesquisadoras e ativistas.

"O enfrentamento da questão do abuso passa pela educação", afirmou na abertura do seminário, a educadora popular da Associação de Educadores da USP, Thálita Vanessa, uma das coordenadoras do movimento. Ela também dirige um grupo religioso inspirado na linha do culto Santo Daime, em Itapecerica da Serra (SP)

Uma carta coletiva de apresentação do grupo, assinado pelas mulheres que integram o MovAya, lida na abertura do seminário por Thálita, esclareceu que, apesar da indignação e da revolta por causa de abusos e abusadores, o movimento não é contra os cultos ou a bebida psicodélica. Pelo contrário, "busca o fortalecimento de espaços pacíficos e seguros para a consagração da ayahuasca".

O texto afirma que relatos de abusos mostram uma quase total invisibilidade do assunto no meio ayahuasqueiro. Para o grupo, a desinformação, o desconhecimento de direitos e leis, o tabu, a pressão espiritual e a falta de resposta às situações de violência nas instituições ajudam a promover o silêncio das vítimas, que se calam por medo e vergonha.

Outros casos

O grupo Coame (Combate ao Abuso no Meio Espiritual) que também oferece apoio à vítimas de grupos do meio ayahuasqueiro, informou já ter recebido diversos relatos sobre abusadores, mas apenas seis casos até o momento foram denunciados.
Segundo o grupo, apenas dois atualmente estão sob investigação, o de Diógenes Mira e o de Antônio Alves Marques Júnior, conhecido como Gê Marques, fundador da igreja Reino do Sol, que mistura a doutrina do santo daime com a umbanda, linha que ficou conhecida como "umbandaime". O inquérito aberto em 2017 está no MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e segue sob sigilo. O acusado também não foi ouvido pela justiça.

Pelo menos uma dezena de denúncias já está no radar do coletivo de mulheres, conta a advogada do MovAya, Jaqueline Constantinov. Ela não quis identificar nenhum caso, mas afirmou que há um padrão que se repete na maioria deles.

A vítima chega ao ambiente religioso fragilizada por alguma situação, buscando cura, orientação espiritual e o agressor geralmente é alguém de poder dentro da comunidade, e legitimado por ela

O sexo entra no jogo como uma via para a cura e o restabelecimento do equilíbrio, observa Jaqueline. "A pessoa pode ficar presa nesse ciclo por muito tempo, até compreender que há algo de errado e que está sendo manipulada". Para a advogada, a impunidade dos agressores e o silêncio de quem sofre o abuso criam um ambiente propício para os abusadores.

Na tentativa de mudar esse cenário, o movimento pretende organizar uma estrutura para atendimento jurídico e acompanhamento das vítimas, desde a denúncia na delegacia até a condenação e responsabilização do abusador, informa Jaqueline. "O intuito é criar mecanismos para evitar o arquivamento de processos e impunidade."

"Movimento é marco político da ayahuasca", diz antropóloga

"Espero que as mulheres que sofram abuso sexual se sintam com mais coragem de falar e reagir", afirma a Universa, a antropóloga Bia Labate, pesquisadora brasileira que há duas décadas pesquisa a ayahuasca e que também participou do seminário do MovAya.

Bia fundou na Califórnia (EUA), onde vive desde 2017, o Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinais, organização que, entre outras atividades, promove ações de combate ao abuso sexual no meio ayahuasqueiro. Para a antropóloga, a criação do MovAya representa um marco político da ayahuasca no Brasil, que ela espera seja capaz de impulsionar mudanças de comportamento. E não apenas de homens. "Que as mulheres que apoiam os abusadores comecem a repensar suas estratégias."