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"Superei dificuldade em aceitar filho gay e hoje ajudo famílias LGBTQIA+"

Olívia é psicóloga. depois de descobrir que o filho era gay e passou a ajudar outras mães e pais de LQBTQIA+ - Arquivo pessoal
Olívia é psicóloga. depois de descobrir que o filho era gay e passou a ajudar outras mães e pais de LQBTQIA+ Imagem: Arquivo pessoal

Olívia Bustani em depoimento a Fernando Barros

Colaboração para Universa

13/07/2021 04h00

"Tenho 62 anos, moro em Salvador, sou psicóloga e mãe de três filhos homens. Eu sempre quis muito ter uma menina, mas não aconteceu, então decidi que iria aplacar essa vontade com as noras e netas. Em janeiro de 2016, eu já estava com duas noras e no ano anterior tinha nascido minha primeira netinha. Tudo seguia conforme a minha expectativa.

Naquele mês, meu filho do meio, Vinicius, até então solteiro e com 28 anos, estava feliz e apaixonado de um jeito que eu nunca tinha visto. Como toda mãe, eu fazia perguntas sobre quem era ela e expressava meu desejo de conhecê-la. Ele respondia à minha curiosidade dizendo que ainda era cedo. Perto do Carnaval, no entanto, ele decidiu falar sobre o seu namoro.

Na véspera de um evento pré-carnavalesco que acontece na cidade e para o qual nós dois iríamos - cada um com seu grupo -, Vinicius me chamou para conversar. Eu estava de saída, mas parei para escutá-lo e ele disse: "estou namorando, mas não é uma mulher, mãe, é um homem". Naquele momento, eu tomei um susto. Fiquei confusa, triste, impactada com a notícia, mas o abracei. Disse que eu só precisava de um tempo e saí.

Na rua, ainda tentando processar aquilo, meu celular toca e era Vinicius. Brincando, ele disse que me ligou para saber se eu não tinha infartado. Respondi que não e que se aquela era a "escolha" dele, eu iria apoiá-lo. Foi quando tive o primeiro de muitos aprendizados que teria dali para frente. Meu filho me respondeu: "isso não é uma escolha, mãe, é o que é. Ninguém escolhe ser minoria".

Passado o susto inicial, eu ainda não conseguia definir direito o que eu sentia em relação à sexualidade dele. Era um misto de frustração, culpa e vergonha. Racionalmente, eu via de uma maneira, mas não conseguia deixar de sentir uma relativa tristeza e desconforto e isso me deixava ainda mais culpada.

"Foi um longo caminho de aprendizados e superação de preconceitos"

Mesmo me considerando uma pessoa "aberta", eu me dei conta de quanto desconhecia questões ligadas à homossexualidade e repetia o padrão estabelecido. Ao mesmo tempo, isso me fez querer buscar mais conhecimento. Com o objetivo de encarar e trabalhar minhas ideias preconcebidas e com a ajuda de Vinicius, que me ensinava muito, comecei um processo de compreender, acolher e me aproximar mais do meu filho.

Não foi fácil. Até porque eu não tive um tempo para absorver a descoberta da orientação sexual dele e depois me preparar para a chegada de um namorado. Eu precisei lidar com as duas situações ao mesmo tempo. Ter um genro era algo novo e inesperado para mim. Foi difícil eu me acostumar com essa ideia. Mas, por outro lado, ver a felicidade de Vinicius foi a minha maior motivação para enfrentar meus preconceitos.

No dia em que eu e o namorado de Vinicius, Daniel, fomos formalmente apresentados, nós dois estávamos pouco à vontade. Foi uma conversa ainda tímida, mas tive uma primeira impressão muito boa do meu genro. Ele me trouxe um livro que abordava o tema da homossexualidade e achei gentil sua atitude.

No entanto, encarar a relação deles ainda era um tabu para mim. Lembro-me de um dia em que Vinicius pediu para Daniel dormir lá em casa porque os dois iriam para um aniversário perto de onde morávamos e ficaria tarde para ele voltar para casa dele. Eu, muito constrangida, neguei. Disse que ainda não estava preparada.

Nessa noite, eu dormi muito mal. Fiquei inconformada comigo mesma. Sabia que se fosse uma mulher, eles já estariam dormindo juntos lá em casa há muito tempo. No dia seguinte, conversei com Vinicius, pedi desculpas e falei que ele podia levar Daniel para dormir lá quando quisesse.

Só pedi que me avisasse antes e que num primeiro momento evitassem cenas de muita intimidade em minha presença. Eu preferia tanto não ver os dois juntos, que eu me sentia "aliviada" quando eles fechavam a porta do quarto. Com o decorrer do tempo, eles já não tinham mais essa preocupação, porém, ao passar pelo quarto deles, eu dirigia o olhar para o lado oposto. Um belo dia, a porta estava entreaberta, eu resolvi parar e olhar para dentro do quarto.

Olivia com o filho Vinicius (de cinza) e o genro Daniel (de amarelo)  - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Olivia com o genro Daniel (de amarelo) e o filho Vinicius (de cinza): ela psicóloga e se baseou na experiência pessoal para criar o projeto "Filhos fora da caixa, pais fora do armário"
Imagem: arquivo pessoal

O que eu vi ali me marcou: eles estavam dormindo de conchinha. Pensei: "quem não gosta de dormir assim com a pessoa amada?". Começava a cair a ficha para mim de que eles eram um casal carinhoso e feliz. E assim eu segui me trabalhando e tentando lidar da melhor maneira com cada fato novo que surgia.

Hoje, Vinicius e Daniel moram em outro estado e tivemos uma experiência nova e extremamente gratificante em dezembro do ano passado. Estávamos há pouco mais de um ano sem nos encontrarmos e eles vieram passar o mês comigo. Foi a primeira vez que convivemos diariamente por um longo período. Foi intenso, delicioso e me ajudou a ver, mais uma vez, que onde há amor não deve existir preconceito.

"Resolvi usar minha profissão e experiência pessoal para ajudar outras famílias"

Considerando as dores e conquistas ao longo do meu processo de desconstrução, resolvi estender essa experiência a outras mães e pais de pessoas LGBTQIA+ que estivessem em busca de apoio, possivelmente ainda impactados pela descoberta, pela falta de conhecimento e pelo preconceito. Nasceu assim em setembro de 2020 o projeto "Filhos fora da caixa, pais fora do armário".

O grupo se constitui em um espaço de acolhimento, escuta, troca e aprofundamento de conhecimentos e experiências, a partir da discussão de textos, filmes, documentários, exercícios individuais e das histórias de cada participante. É voltado para quem quer construir um novo olhar sobre o seu filho, filha ou filhe, a partir do entendimento e da aceitação de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero.

Usando a minha história pessoal combinada à minha experiência como psicóloga e facilitadora de processos em grupo, eu espero, com essa iniciativa, poder colaborar com o processo vivido por outras famílias, convocando-as a ampliarem seu olhar. Quero dizer a esses pais e mães que é possível ressignificarem sentimentos e seguirem mais confiantes, compreendendo e amando seus filhos, filhas e filhes por inteiro, como eles precisam e merecem.

Como estamos nesse momento de pandemia, o trabalho tem sido online. Os encontros acontecem através de uma plataforma de videoconferência, permitindo a participação de mães e pais de diferentes estados. Os interessados podem fazer a pré-inscrição no meu site. Após o primeiro contato, são avaliados o interesse, as condições e informado o valor para participação no grupo.

A quantidade de participantes não é fixa, mas, para assegurar a oportunidade de fala e escuta para todos, há um limite máximo de 6 pessoas por grupo. São realizados 9 encontros e elas seguem juntas do primeiro ao último, não sendo permitida a entrada de outras, depois de iniciado. Os participantes têm direito também a mais um encontro individual comigo, ao longo do período do projeto.

Os retornos recebidos me fazem ter cada vez mais certeza de que esse é o caminho e o meu propósito de vida, daqui para frente. Como diz Gonzaguinha em umas de suas músicas: "toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas" e eu, seguramente, quero continuar aprendendo. Além de fazer minha parte para tornar o mundo um lugar melhor e mais inclusivo." Olívia Bustani é psicóloga, tem 62 anos e mora em Salvador.