"Fiz um filme sobre meu filho criado como menina e que hoje é não-binário"
Meu nome é Coraci Ruiz, sou cineasta e tenho 43 anos. Moro em Campinas (SP), onde dirijo uma produtora de documentários. Tenho dois filhos: Noah, que completa 20 no mês que vem, e Martí, de 14. Engravidei do Noah muito jovem, aos 22 anos. Na época, fazia faculdade na Unicamp e morava numa república com o pai dele. Quando veio o resultado do ultrassom, falaram que era menina e nós acreditamos.
Foi então que, aos 15 anos, Noah, que ainda era chamado pelo nome de registro, disse que estava em dúvida sobre a identidade de gênero dele. Ele tinha um amigo transgênero, que estava tomando testosterona e fazendo a transição. Eu acompanhei a história do amigo, mas em nenhum momento desconfiei que Noah também fosse trans. Ele nunca havia se identificado como sendo do sexo masculino. Na verdade, ele tinha um lado feminino muito forte, então aquilo deu um nó na minha cabeça.
Sempre quis ser uma mãe compreensiva, que acolhe o filho. Quando Noah me contou, não fiquei em choque nem desesperada, mas era uma questão nova para mim. Na minha adolescência, tinha um amigo gay que sofria porque os pais não o aceitavam, mas, fora do meio acadêmico, não existia esse debate mais amplo sobre cisgênero, transgênero ou não-binário. Perguntei ao Noah: "Será que eu posso fazer uma entrevista com você sobre esse assunto?" Estava começando um doutorado sobre documentário autobiográfico e esse processo de transição do Noah acabou fazendo parte da minha tese acadêmica.
Noah literalmente desenhou para que eu pudesse entender. Ele pintou um corpo humano no papel, apontou para a genitália e falou que aquilo é só um órgão, ele não define nem a sua identidade de gênero nem por quem você se atrai. Depois localizou a identidade de gênero no cérebro, seria como você se enxerga e quer que os outros te enxerguem: cisgênero (que se identifica com o sexo biológico atribuído no nascimento), transgênero (que não se identifica com o sexo atribuído no nascimento) ou não-binário (não se identifica totalmente nem com o sexo masculino nem com o feminino). A orientação sexual ele localizou no coração: por quem você se
atrai. Englobando o corpo inteiro seria a maneira como você se veste e se expressa. Esses quatro elementos podem se combinar de inúmeras formas diferentes. Gravamos a conversa em vídeo, que se tornou o embrião do meu documentário autobiográfico "Limiar", sobre o processo de acompanhar a transição do meu filho.
Sempre respeitei as escolhas do Noah. Pensava: se ele quer que o chame com o novo nome, vou chamar. Mas é óbvio que, por dentro, havia um sentimento estranho. Tinha uma dor que eu demorei a identificar. Um dia pensei em fazer uma festa de despedida do nome que eu dei e de boas-vindas ao nome que ele escolheu e imaginei o discurso que eu faria. Quando comecei a escrever, chorei tudo o que eu não havia chorado até então. Era tão forte o desejo de ser uma mãe acolhedora, que eu ficava segurando a minha onda. Escrever o discurso foi um processo terapêutico: eu tinha que botar para fora toda a minha dor, chorar e viver esse luto.
O mais difícil foi aceitar a mudança do corpo dele. Demorei até conseguir assinar o papel autorizando o Noah a fazer a transição de gênero. Ele era tão jovem, tinha medo de que ele se arrependesse depois. Ao mesmo tempo, ao não assinar, poderia estar fazendo durar uma dor que eu nem sei como é. Só me senti segura quando conheci o Ambulatório de Gênero da Unicamp. Eles oferecem um serviço multidisciplinar: tem psiquiatra, ginecologista, arte terapeuta e endocrinologista. Noah passou por várias avaliações e exames antes de ter certeza de que queria fazer o tratamento com testosterona. Aos poucos, a voz dele engrossou, nasceu a barba, ele parou de menstruar e o formato do corpo mudou.
Após um ano e pouco de tratamento, quando ele chegou ao resultado que queria, parou de tomar testosterona e desistiu de fazer a cirurgia para a retirada dos seios. Ao longo do processo, Noah se descobriu como uma pessoa não-binária. Ele se encontrou no meio do caminho: não se identifica totalmente nem com o gênero feminino nem com o masculino. Já vi ele sair com meninos e meninas, ele se interessa por pessoas, independentemente do gênero. Passou no vestibular da USP e está no segundo ano do curso de Artes Visuais. Tenho um orgulho enorme dele.
Como mãe de um filho LGBTQIA+, sinto urgência em disputar a narrativa com um governo liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, que representa um retrocesso gigantesco nas conquistas dos direitos dos gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, queers, intersexuais e assexuais. Meu desejo é que esse filme seja exibido em escolas, universidades e para grupos de apoio a pais que desejam se informar e acolher melhor seus filhos. Quanto pior é o cenário de intolerância no país, maior é a urgência de se contar histórias como a do Noah."
O filme "Limiar", de Coraci Ruiz, tem estreia on-line no dia 10/08. Escolas, universidades e outros grupos interessados podem organizar sessões gratuitas do filme pela plataforma: www.taturanamobi.com.br
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