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'Meu filho não tem certidão porque cartório se recusou a registrar 2 mães'

Rita* com a esposa e o filho, que aos seis meses ainda não tem certidão de nascimento - Arquivo pessoal
Rita* com a esposa e o filho, que aos seis meses ainda não tem certidão de nascimento Imagem: Arquivo pessoal

Rita* em depoimento a Mariana Gonzalez

De Universa

22/07/2021 04h00

"Temos dez anos de relacionamento e a maternidade nunca passou pela nossa cabeça — até que, em 2017, meu relógio biológico começou a dar sinais desse desejo. Passei o ano de 2019 inteiro indo a ginecologistas para fazer exames de fertilidade e descobrimos que estava tudo bem. Depois de três tentativas de inseminação artificial caseira, engravidei. A emoção do parto foi o sentimento mais indescritível da minha vida. Receber o Lucas* nos meus braços foi um presente, a melhor decisão das nossas vidas.

Mas, quando ele não consegui registrá-lo com meu nome e da minha esposa. Meu filho tem seis meses e, até agora, não conseguimos emitir a certidão de nascimento dele.

Quando Lucas nasceu, pedi à maternidade que constasse o meu nome e o nome da minha companheira na DNV [declaração de nascido vivo, documento emitido pelo hospital necessário para fazer o registro da criança], mas ouvi que seria impossível, porque esse papel é impresso com os campos 'pai' e 'mãe' e não pode ser rasurado. Cheguei a falar com a ouvidoria do hospital, mas disseram que não poderiam se responsabilizar caso o cartório não aceitasse.

Minha esposa foi até o cartório de Botafogo e, como já esperávamos, se recusaram a fazer o registro. Meu bebê passou algum tempo na UTI e, quando tivemos alta médica, voltei ao cartório, que era o mais próximo da maternidade, para tentar novamente. Lá, o tabelião também se recusou a emitir a documentação.

Por sorte, um atendente disse que eu poderia redigir uma petição de próprio punho explicando como meu filho foi concebido — por meio de inseminação caseira, usando sêmen de um doador — e por que era importante que ele tivesse os documentos com o nome das duas mães.

Me deram um prazo de 25 dias para a resposta. Depois de 35 dias sem retorno, voltei lá e nada. Por fim, tanto o tabelião quanto o juiz negaram nosso pedido porque disseram não reconhecer a inseminação artificial caseira como forma legal de concepção.

"Tive que acionar uma advogada e o caso foi Ministério Público do Estado"

Não consegui colocar meu filho no plano de saúde da minha empresa e nem no da minha esposa. Tive que pagar para ele tomar todas as vacinas no sistema privado, desde que deixamos a maternidade, porque no sistema público esbarramos na burocracia, já que ele não tem CPF e nem carteira do SUS. Toda vez que levo ele ao médico, além de ter que pagar a consulta, preciso explicar que ele não tem certidão de nascimento e por quê.

Eu não fico constrangida por falar que sou casada com uma mulher e que meu filho foi gerado por meio de inseminação caseira, mas é difícil passar por tudo isso na fila da emergência do hospital, por exemplo, como aconteceu na semana passada, quando ele pegou covid-19.

Isso acontece sempre: pedem a filiação, eu respondo meu nome e o nome da minha esposa e o atendente pergunta do pai. Lá vou eu de novo explicar que ele não tem pai, que tem duas mães.

Quando decidimos engravidar, chegamos a procurar uma clínica de reprodução assistida, mas quando pegamos o orçamento da fertilização in vitro, que tem maior percentual de sucesso para a minha idade, quase caímos para trás: teríamos que pagar R$ 30 mil, além da medicação, que também era cara. Acabamos desistindo da ideia.

Tentamos a inseminação caseira pela primeira vez em 2018, não funcionou, e então tentamos novamente em 2020, quando engravidei, aos 39 anos, usando o sêmen de um doador que conhecemos nas redes sociais, com quem não temos mais nenhum contato, como foi acordado.

Não abro mão do meu direito de ter meu filho registrado no meu nome e de minha esposa, como qualquer outra criança. Por isso, continuo na luta.

Espero que a certidão do meu filho seja emitida até o final do ano, porque além das questões de acesso à saúde, eu não consigo batizá-lo e nem matriculá-lo em uma creche quando voltar a trabalhar.

Ando sempre com uma cópia da DNV, único documento que comprova que eu sou a mãe do Lucas*, mas mesmo assim tenho medo de sair com ele. Vai que acontece um acidente, como ele vai dar entrada no hospital? Como eu provo que ele é meu filho? E se a minha esposa precisa levá-lo ao hospital, como prova que é mãe, se nem na declaração do hospital consta o nome dela?

É uma situação absurda. Nossas famílias sempre existiram e estão mais visíveis a cada dia, mas não temos leis para nos amparar em um processo como esse, que não é regulamentado pela medicina — mas deveria, porque nem todo casal homoafetivo tem dinheiro para pagar uma reprodução assistida.

Família é onde tem amor. Nós estamos casadas há dez anos, nossas famílias apoiam a nossa relação e são muito presentes na vida do nosso filho. Espero que esse processo não caia na mão de um juiz com a mente fechada, mas de alguém que veja na gente uma família concreta e estabilizada, que só tem amor para dar." Rita*, de 39 anos, mora em Nilópolis (RJ). Ela preferiu não ser identificada porque nem todos os chefes e colegas de trabalho sabem que ela é casada com uma mulher.

Cartório diz que "obedece rígida normatização legal"

Procurada por Universa, a Arpen Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais) disse, em nota, que "os Cartórios de Registro Civil obedecem a rígida normatização legal" e que, segundo o provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, é "indispensável" apresentar documentos da clínica de reprodução assistida para fazer o registro de um bebê com duas mães.

"Não sendo possível apresentar essa declaração, pelo procedimento ter sido feito de outra forma que não a regulamentada, a unidade cartorária fica obrigada a enviar o procedimento de registro de nascimento ao juiz competente e ao Ministro Público, devendo aguardar a chancela judicial para efetuar o registro", informou a Arpen. "Orienta-se, nesta situação, que o registro de nascimento seja feito em nome da mãe biológica, promovendo-se a inclusão da dupla maternidade/paternidade após a apreciação do pedido pelos órgãos judiciais."