'Meu filho com Down pôde voltar a brincar após tratar asma com cannabis'
"Eu tenho um filho de 11 anos com Síndrome de Down que desde os 7 usa canabidiol para tratar a asma crônica. Antes, a gente vivia no hospital e eu tive que deixar de trabalhar para me dedicar aos cuidados com o meu filho. Quando começamos a terapia com cannabis, as crises de asma do Miguel pararam e eu fui contratada para apoiar outras famílias que estão no início do tratamento e precisam lidar com os processos na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Sou psicóloga de formação, sempre tive uma relação com pessoas com Síndrome de Down e, antes de engravidar, eu já tinha me especializado no atendimento a pacientes com deficiência. Mesmo com todo o conhecimento, receber o diagnóstico de que o meu filho tinha Down foi muito difícil.
Eu tive meus momentos de negação, de revolta com Deus, fiquei pensando o que eu tinha feito de errado. Nesse processo, algumas pessoas se afastaram, mas tivemos muito apoio da família, que nos acolheu.
Tive uma gestação complicada e, quando o Miguel nasceu, larguei tudo para ser mãe e cuidadora. Miguel andou e falou antes do esperado, teve um ótimo desenvolvimento até os três anos, porque, como eu era da área, levava ele para terapia todo santo dia.
Uma semana depois de completar três anos, ele sofreu dois AVCs (acidente vascular cerebral), que comprometeram a linguagem e os movimentos do lado esquerdo do seu corpo. Investigamos e descobrimos que o Miguel tem uma síndrome vascular rara. Além disso, ele sempre teve pouca produção de leucócitos, imunidade bem baixa e asma crônica. Aí começou a batalha mais difícil.
Dos três aos sete anos, foram muitas internações. Eu me lembro que, em dois meses, ele foi oito vezes para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Estávamos esgotados e já tínhamos tentado de tudo. Ele tinha muita dificuldade para se desenvolver, não ganhava peso, e foi nesse momento que descobrimos o canabidiol, uma substância extraída da cannabis que tem potencial terapêutico.
Foi uma sugestão da médica, e eu disse sim de imediato. Já tínhamos tentando tanta coisa, vários remédios; em casa, tinha um monte de inalador, adrenalina, aprendi até a aspirar o meu próprio filho. Confesso que a exaustão era tanta, que dei um voto de confiança. O tratamento acabou fazendo toda a diferença.
Hoje, faz quatro anos que o Miguel não pisa mais no pronto-socorro, está saudável e com a doença estabilizada.
Ele começou a usar canabidiol por conta da asma, mas também tivemos resultado positivo em relação ao problema de tireoide, e não precisamos mais ajustar as doses de hormônios. Agora, meu filho tem a qualidade de vida que nunca teve. Ele pode brincar.
'Você vai dar maconha para o menino?'
Na fase em que a gente vivia no hospital, eu não me via voltando ao trabalho, porque tinha que ficar nesse resguardo, pronta para qualquer emergência.
No ano passado, no meio da pandemia, a médica do Miguel me convidou a conversar com outras famílias que tiveram indicação de tratamento com canabidiol e contar a nossa experiência. Ainda existe muita resistência, as pessoas associam o produto com a maconha, então comecei a fazer esse trabalho.
Quando se fala em canabidiol, muita gente associa com o baseado, com um lugar de delinquência, não entende que estamos falando de um óleo. Vejo que falta muita informação e que a cannabis medicinal é outra coisa.
Minha mãe é católica, bem religiosa, e no começo me disse: você vai dar maconha para o menino? Hoje ela indica para todo mundo, fala dos benefícios para a saúde do Miguel.
As conversas que tive com outras famílias deram tão certo que eu fui contratada pela HempMeds e hoje atuo fazendo essa ponte com as famílias e com a Anvisa, dando suporte na importação do canabidiol.
Eu me permiti voltar a trabalhar por conta do fim das crises do Miguel. Ter uma profissão outra vez tem sido muito importante para entender que eu posso ter uma função além de ser mãe, sem negligenciar o tempo com ele.
'Diagnóstico é o momento mais difícil'
Eu também participo de um grupo de acolhida de famílias que acabaram de receber o diagnóstico de Síndrome de Down, porque esse é o momento mais difícil. Muitos médicos não sabem lidar com o que não é considerado típico e as famílias precisam de escuta.
É necessário entender que cada vivência é única, especial. Não dá para falar simplesmente que vai ficar tudo bem, banalizar essa dor. Ela existe, precisa ser vivida, ressignificada e transformada.
Nesse sentido, acho que a minha formação enquanto psicóloga e a minha experiência como mãe ajudam muito, porque eu tenho empatia, lembro das minhas vivências com o meu filho. Eu sei que cada família precisa de um tempo de maturação da notícia, e o que eu faço é me colocar à disposição. Tem dado supercerto.
Hoje eu entendo que Deus não faz a gente passar por isso à toa. Eu vivi com meu filho questões que não viveria se tivesse um filho típico e hoje a gente dá mais valor à convivência, à felicidade.
Não é fácil, porque a maior frustração da vida de uma mãe é a impotência diante da dor de um filho ou das limitações físicas, quando ele derruba algo, quando não consegue andar de bicicleta, quando quer muito fazer algo e não consegue.
Como mãe, é uma porrada e não tem nada que eu possa fazer. Nessas horas, tenho vontade de guardá-lo em um potinho, livrá-lo das frustrações, mas não posso. É um trabalho difícil de autoconhecimento, de lidar com expectativas, com as minhas e as dele."
* Fernanda Cammarota, 42, é psicóloga e vive em São Paulo (SP)
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