Como Argentina, Brasil pode ter cota para trans e travestis nas empresas
Quando a Argentina instituiu cotas para pessoas trans no serviço público, há um mês, já tramitava na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei para implementar uma regra semelhante no Brasil: se aprovado, o texto do deputado federal e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP) vai implementar uma reserva de 3% das vagas em empresas ligadas ao governo para travestis e transexuais.
Em São Paulo, uma petição pública pedindo a mesma porcentagem de reserva de vagas para cargos públicos nos três poderes está perto de bater a meta de 35 mil assinaturas e ser enviada para discussão na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).
As duas propostas tentam corrigir uma realidade dura: o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo e, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 90% das mulheres trans estão fora do mercado formal de trabalho e que, por isso, recorrem à prostituição. Mas, afinal, reservar 3% dos postos de trabalho, seja dos cargos públicos, seja de empresas ligadas ao governo, pode reverter este cenário? Especialistas ouvidas por Universa acreditam que sim.
"Hoje, o número de trans e travestis nestes cargos está perto de zero. Eu desconheço que existam na magistratura ou na Defensoria Pública, por exemplo. Quando existe uma cota, você estimula que pessoas T alcancem estes lugares e, inevitavelmente, levem suas visões de mundo para as tomadas de decisão, o que pode influenciar na criação de políticas públicas", diz Amanda Souto Baliza, advogada e presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-GO — a primeira advogada trans a ocupar este cargo na OAB em todo o país.
Erica Malunguinho, primeira mulher trans a ocupar uma cadeira na Alesp, e Ornella Infante, primeira mulher trans candidata ao Congresso da Argentina, concordam: este pode ser o pontapé inicial para reduzir a desigualdade entre pessoas trans e cisgênero no Brasil.
Projetos têm chances de aprovação?
O PL do deputado Alexandre Padilha, apresentado em fevereiro, aguarda aprovação na Comissão de Direito da Mulher da Câmara e ainda deve passar pelas comissões de Direitos Humanos, de Trabalho e Serviço Público e, por fim, de Constituição e Justiça.
Na Comissão de Constituição e Justiça, é pouco provável que seja aprovado, já que o grupo é presidido pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) — nos últimos anos, ela sugeriu projetos de lei que queriam proibir a participação de mulheres trans em equipes femininas de esportes e impedir que o STF (Supremo Tribunal Federal) tipificasse homofobia e transfobia como crimes.
"Este seria um passo importante num país como o Brasil, que vive hoje a disseminação do ódio, da violência, da restrição de direitos a esta população. E ainda mais importante no momento em que estamos vivendo, em que a pandemia afetou fortemente um conjunto de setores econômicos mais abertos à atuação de profissionais LGBTQIA+, como cultura, o turismo e o setor de bares e restaurantes", disse o deputado Alexandre Padilha, a Universa. "Sabemos que é um projeto que precisa de muito convencimento no atual cenário do Congresso para ser aprovado. A velocidade da tramitação do projeto está diretamente ligada à pressão que a sociedade, que a população LGBTQIA+ e que entidades de defesa de direitos faz sobre os parlamentares."
Vale lembrar: todos os direitos assegurados para pessoas LGBTQIA+ no Brasil foram aprovados pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e não pelo Congresso Nacional. Câmara e Senado nunca aprovaram leis que pautam direitos para esta população.
Já a petição que pede reserva de vagas nos concursos públicos no estado de São Paulo deve ser enviada à Alesp logo que alcançar 35 mil assinaturas — até a tarde de quinta-feira (22), o documento tinha 31,3 mil assinaturas. Na Casa, deve ser avaliado pelo presidente Carlão Pignatari (PSDB), que decidirá se dará continuidade à proposta.
"A atual conjuntura do Congresso é marcada por correlações de forças. O projeto pode não ser votado, mas com certeza irá render discussões importantes para a afirmação dos nossos direitos", disse a deputada Erica Malunguinho, quando perguntada sobre as chances da proposta ser votada em plenário.
Evasão escolar e transfobia fecham portas do mercado
"Iniciativas que buscam preencher essa lacuna serão sempre bem-vindas. Levando em conta que travestis e mulheres trans estão majoritariamente no trabalho sexual de forma compulsória, precisamos de ações, público e privadas, que criem outras possibilidades de subsistência para nossa população", fala Malunguinho.
No Brasil, pelo menos 12 universidades públicas têm cotas para trans e travestis, nos mesmos moldes da reserva de vagas para pessoas negras, mas, reforça Amanda, é preciso fortalecer a educação de crianças e adolescentes trans muito antes do Ensino Superior. "Pessoas trans dificilmente chegam à faculdade porque, muitas vezes, não conseguem concluir o Ensino Médio. A evasão escolar é muito grande", elas só recorrem à prostituição por falta de oportunidades nos estudos e no mercado de trabalho, explica.
Justamente por isso, a lei Argentina, que entrou em vigor no final de junho, determina que a não conclusão do ensino básico não pode ser impedimento para a contratação de um profissional transexual, bem como antecedentes criminais considerados irrelevantes — o que foi recebido com muita felicidade pela comunidade trans, disse Ornella Infante, a Universa.
No Brasil, a lei que tramita na Câmara não faz menção a antecedentes criminais e nem à escolaridade das pessoas T contratadas para as vagas reservadas.
"Me parece correto que a lei de cotas se adapte à realidade da população trans. Em um país em que a estimativa, Segundo a Antra, é de que 90% das mulheres trans dependem de prostituição, só 0.02% chegam ao ensino superior ao passo de que a expectativa de vida é de 35 anos são necessárias medidas para que essa realidade seja modificada e as cotas são medidas que agem nesse sentido.
Ela defende que, além de reduzir essa desigualdade, as cotas que forçam a contratação de pessoas trans terão , também, o efeito de amenizar o preconceito contra esta população: "Como a população trans vive fora do mercado de trabalho, muitas pessoas têm preconceito por falta de convívio. Com o tempo de convivência, os colegas percebem que os estereótipos não são reais, são construções feitas a partir de imagens pejorativas. O convívio quebra esse preconceito, porque mostra à sociedade que essa não é uma questão a ser temida", diz.
Não basta contratar, é preciso acolher profissionais
Apesar de enxergarem com bons olhos a criação das cotas, tanto a advogada quanto a parlamentar acreditam que essa medida sozinha não garante a permanência de pessoas T no mercado de trabalho — para elas, é preciso garantir não só a contratação, mas a permanência destes profissionais, por meio de ações que preparem o setor para evitar constrangimentos a práticas transfóbicas, seja no trato com colegas ou nos documentos, que devem respeitar o nome social, por exemplo.
"Quando pessoas trans são contratadas sem essa preocupação de como vão se manter na empresa, sem ações de proteção e conscientização, acabam enfrentando uma série de transtornos. Muitas vezes, elas têm a vida transformada em um inferno", diz Amanda. "É preciso que as empresas pensem em contratar, claro, mas também pensem em educar os colaboradores, desde os colegas até setores administrativos, como o RH."
Além disso, a advogada defende que existam, também, leis que determinem ou incentivem a reserva de vagas para pessoas T em empresas privadas, sem relação com o governo.
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